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Delito de Opinião

Estrelas de cinema (19)

Pedro Correia, 27.02.13

 

OS FINS E OS MEIOS

*****

Há filmes assim. Mal acabamos de os ver, sabemos logo que estamos perante uma obra a que um dia chamarão clássico.

Acontece-me de vez em quando. Aconteceu agora, com 00.30 Hora Negra, de Kathryn Bigelow (por uma vez prefiro A Hora Mais Escura, tradução brasileira do título original, Zero Dark Thirty, inspirada no jargão militar para designar a hora a que foi morto Ossama Bin Laden, em 2 de Maio de 2011). Já me tinha sucedido o mesmo há três anos, com Estado de Guerra, uma longa-metragem da mesma realizadora centrada numa unidade de elite norte-americana na guerra do Iraque que lhe valeu o Óscar de melhor filme.

Bigelow, primeira mulher a receber uma estatueta em Hollywood como realizadora, voltou a associar-se ao argumentista Mark Boal e o resultado, uma vez mais, esteve ao nível do melhor que o cinema norte-americano já nos proporcionou este século: um excepcional filme de "ficção documental", nas palavras da própria cineasta, que recria a actividade dos serviços secretos com uma intensidade e um fôlego épico dignos de um John Ford, o realizador que "inventou" o western e conferiu um cunho de autenticidade à lenda.

Coisas que só acontecem com os grandes cineastas.

 

Há filmes que nos prendem logo ao primeiro fotograma. É o caso deste: o ecrã está escuro, apenas ouvimos sons. São as vozes das vítimas do 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque: as últimas palavras que proferiram, já encurraladas nas torres-túmulos, com as chamas a devastarem o outrora orgulhoso World Trade Center.

Aqui não há margem para relativismos morais. Sabemos bem de onde vem o Mal - vem de quem odeia este sistema democrático e esta sociedade plural em que vivemos e quer transformar o mundo num imenso califado submetido à impiedosa Lei do Alcorão. Este é o fim, os meios não importam. Pode custar um cadáver, pode custar um milhão de cadáveres - é tudo uma questão de estatística, como ensinava Estaline, que nunca viveu dilacerado com tais rebates de consciência.

Acontece que ninguém sai inocente do combate ao Mal absoluto. Churchill costumava dizer durante a II Guerra Mundial que para derrotar Hitler, se fosse preciso, iria ao próprio inferno coligar-se com Satanás. O coro de críticas a 00.30 Hora Negra na imprensa norte-americana e britânica devido à suposta apologia do uso da tortura pelos operacionais da CIA nos interrogatórios aos suspeitos de ligações à Al-Qaida ilude o essencial: essa componente do filme, dominante nos primeiros 25 minutos, é fundamental precisamente para adquirirmos a certeza sobre um dos efeitos mais nefastos do terrorismo islâmico - ao combatê-lo com um mínimo de eficácia, arriscamo-nos a ser contaminados por ele, pelo menos na convicção de que os fins justificam os meios.

Há muito que um filme não suscitava tanta celeuma. David Edelstein, na revista New York, situou Zero Dark Thirty "na fronteira do fascismo" (embora atribuindo-lhe o rótulo de obra-prima, em linha com o New York Times, que o incluiu entre os melhores filmes do ano). E a feminista norte-americana Naomi Wolf, num desvario extremista, chegou a comparar Bigelow a Leni Riefenstahl. A histeria cresceu ao ponto de levar a realizadora a justificar-se, em artigo publicado no Los Angeles Times.

Embora galardoada com o Prémio dos Críticos de Nova Iorque, a película ficou arredada do Óscar, que sem dúvida merecia, sendo ultrapassada na corrida à estatueta pelo politicamente correcto Argo, bafejado até pela simpatia da Casa Branca, ao mais alto nível.

 

Mas voltemos à questão central dos meios e dos fins, bem espelhada na metamorfose que se vai desenrolando subtilmente, aos olhos do espectador atento, na personagem principal: Maya, agente da CIA, obsessiva, perfeccionista e determinada, interpretada por uma Jessica Chastain em estado de graça num desempenho que lhe valeu o Globo de Ouro.

No contraste entre o ar etéreo de Maya e a sua férrea determinação em prosseguir a maior caça ao homem da História reside boa parte do sucesso deste filme que não faz a menor concessão ao habitual glamour hollywoodesco.

Quase sempre filmada a meia distância, como se isso constituísse parte integrante do seu disfarce, sem nunca trair um vestígio de emoção, ela faz da morte de Bin Laden a sua razão de viver, numa luta de proporções bíblicas. E ninguém o combate de forma tão tenaz, ao longo de uma década em que imita a estratégia da aranha tecendo a sua teia, entre 2001 e 2011, com muitos desaires de permeio (o atentado de 7 de Julho de 2005 em Londres, a explosão do hotel Marriott, em Setembro de 2008, em Carachi), sem convenção de Genebra, com muitos danos colaterais, obsessivamente em busca daquele cadáver para o qual ela olhará e no qual ela tocará, numa analogia simétrica e herética com São Tomé.

A prolongada sequência da tomada do bunker de Bin Laden, reconstituindo plano a plano a operação de alto risco no complexo de Abbottabad merece figurar em qualquer antologia de thrillers no cinema. Mas é no extraordinário plano final, também digno de John Ford, que tudo culmina e tudo se decifra: Maya solitária, extenuada e desamparada, parece minúscula a bordo de um enorme avião de carga C-130. Perguntam-lhe: "Para onde quer ir?"

Ela não responde. Pois não há resposta a esta pergunta. Com a morte de Bin Laden, outros alvos virão. O filme termina, mas esta é uma guerra sem fim à vista.

 

 

00.30 Hora Negra (Zero Dark Thirty, 2012). De Kathryn Bigelow. Com Jessica Chastain, Jason Clarke, Joel Edgerton, Chris Pratt, James Gandolgini, Jennifer Ehle, Mark Strong, Kyle Chandler.

2 comentários

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    Pedro Correia 28.02.2013

    Expliquei-me mal, caro Pedro Mendes. Eu também não acho que o filme chegue a essa conclusão. Acho, isso sim, que o dilema entre o fim e os meios percorre todo o filme - e que isso o torna ainda mais interessante. É óbvio, para mim, que esse dilema está resolvido na cabeça da personagem da agente Maya. Ela poderia dizer perfeitamente o que Churchill disse a propósito de Hitler. Para ela, Bin Laden equivalia a Hitler - ponto final.
    Mais relevante, de qualquer modo, é verificarmos que no combate ao Mal absoluto acabamos de algum modo por nos deixarmos contaminar, ainda que involuntariamente, por sementes desse Mal. O filme fala-nos disso e interpela-nos também por causa disso.
    Por isso entendo que quem viu aqui uma apologia da tortura, ou algo semelhante, viu outro filme que não este. Como é óbvio, a Kathryn Bigelow tem toda a razão naquilo que diz.
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