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Delito de Opinião

O Grandolismo

jpt, 22.02.13

(José Afonso, "Os Vampiros")

Regresso a casa e leio que em Portugal grassa uma onda ideológica, a do "grandolismo". A juventude universitária, prenha de hormonas esfuziantes (e catapultada por uma bem sucedida pateada ao ministro Miguel Relvas, a qual tem levado a reacções adversas exageradíssimas, que encontram um quasi-criminoso atentado no mero apupar de um ministro até que este desista de botar e se cale, um excesso de pruridos que me parece um bocado patético), alia-se à meia-idade universitária, esta no afã da reorgasmização da vidinha. E o amplexo assim constituído anda por aí a "grandolar" ministros e (presumo) afins.

José Afonso foi um enorme músico-compositor, o maior da sua geração, a qual marcou e nisso alimentou nomes queridos como o magnífico Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho e Fausto, estes que felizmente continuam connosco e como tal não precisam de adjectivos. Um pouco como Pedro Ayres de Magalhães (num registo menos heróico) na geração seguinte. Militante, radical, se estivesse vivo muito provavelmente concordaria com este ressurgimento reutilizador da sua "Grândola".

Mas ela, em boa medida, já não lhe pertence, como sempre acontece aos símbolos. Pertence a quem a utiliza, cada um à sua maneira, e nisso avaliado pela forma como o faz. A "Grândola" ficou como símbolo do 25 de Abril. Polissémico, como qualquer símbolo. Mas centrado no advento da liberdade, diz, pensa e acima de tudo sente, o discurso higiénico português. Esse que, bem na tradição colonialista da "esquerda", do "centro" e da "direita" portuguesa, esquece que ela é também (fundamentalmente?) o símbolo da paz, do fim do nacionalismo bacoco, serôdio, anacrónico, que se traduzia em práticas político-administrativas-económicas brutais e numa guerra violentíssima, prolongada, injusta. E ... inútil.

Assim sendo este "grandolismo", que o indignismo bloquista descobre e agita, não vem apenas retomar a usurpação do sentimento democrático. Subliminarmente (?) armando-se das polaridades de 1974, isso do "nós, democratas, que cantamos" vs "vocês, fascistas, que vão mudos", essa velha vontade monopolista (latifundiária) do pensar democraticamente (a qual que em outros tempos indignistas encheu o país de dísticos e pinturas intitulando de "fascistas" homens como António Barreto, Pezarat Correia ou Franco Charais, como exemplos hoje surpreendentes, mas que convém lembrar para entender o terrorismo intelectual de quem assim ia. E vai.). 

Na verdade este actual "grandolismo", agit-prop que quer associar o poder político actual à memória do pré-25 de Abril, promove (e disso se alimenta) o esbatimento das características estruturais políticas, repressivas e sociais desse período, para as poder imputar ao hoje. Essas características coloniais, como refiro, mas também as especificamente internas. É um espantalho, um instrumento de desconhecimento desse passado, como tal da actualidade, naquele constituída, daquele tão diversa. O festivo, até erótico, "grandolismo" é um desejado instrumento de desconhecimento, friso. 

Por isso mesmo, e por exemplo, um ícone como "Os Vampiros" - tão adequado a uma crítica cantada ao momento actual (concorde-se ou não com a crítica intentada) - não surge. Pois não é a crítica que se pretende, apenas a invectiva (bipolarizadora). E nisso se torna doloroso assistir à promoção disto por quem tem como função profissional investigar (aka, criticar) e ensinar (aka, criticar). Nessa pantomina a fazer-me lembrar Zeca Afonso, cantando magnificamente um obscuro poeta:

 

(José Afonso, "No Comboio Descendente")

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