Estrelas de cinema (18)
O REVERSO DA MEDALHA
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Adeus, lugares-comuns. Steven Spielberg, de forma surpreendente, fornece-nos neste filme o retrato menos lisonjeiro do político mais idolatrado nos Estados Unidos. Lincoln estilhaça alguns mitos sobre o 16º presidente norte-americano, apresentando-o como um governante idêntico a tantos outros: confrontado com sucessivos dilemas, como sempre sucede a quem exerce cargos políticos, age de acordo com imperativos de consciência mas comporta-se na hora decisiva como um vulgar discípulo de Maquiavel no eterno confronto entre os fins e os meios.
Este é, de longe, o aspecto mais perturbante do filme. E também o que o torna muito recomendável, mesmo àqueles que não escondem a sua habitual aversão a Steven Spielberg e chegam a classificar cada título da sua filmografia com uma frase que constitui a apologia da ignorância: "Não vi e não gostei."
Lincoln - rara incursão do criador de E.T. no domínio da política - parece, à primeira vista, um filme gongórico e reverente, concebido para piscar o olho à Academia de Hollywood enquanto enaltece o nome mais firme da mitologia política norte-americana. De resto, o líder que pôs fim à escravatura nos EUA tem atraído inúmeros cineastas - incluindo figuras da craveira de Griffith e Ford - num país onde a geografia suplanta a história e tem uma carência absoluta de heróis.
Mas aqui as aparências iludem. E o que subjaz afinal é o retrato de um político dilacerado a vários níveis, infeliz na vida familiar e decidido a impor as mais louváveis medidas pelos mais detestáveis métodos. Deixando evidente que toda a medalha tem o seu reverso.
Apostado em pôr fim ao sistema esclavagista, que manchava a honra dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865) recorreu para o efeito ao prolongamento artificial da Guerra da Secessão, o que lhe permitia ganhar tempo para inevitáveis manobras nos corredores do Congresso à custa de uns quantos milhares de cadáveres acumulados nos campos de batalha. Campeão imbatível do idealismo político, não hesitou em comprar os votos de que necessitava entre os congressistas, tanto das fileiras do seu Partido Republicano como dos rivais do Partido Democrático, fomentando a corrupção política.
Ao contrário de tantas outras películas de Spielberg, este é um filme amargo e descrente na natureza humana. Enquanto a carruagem do presidente sulca as ruas enlameadas de Washington, conseguimos decifrar os confrontos morais que perpassam no espírito do inquilino da Casa Branca, através de uma interpretação inexcedível de Daniel Day-Lewis, talvez o maior actor de cinema do nosso tempo e principal candidato ao Óscar (que será o seu terceiro, caso venha a recebê-lo na próxima segunda-feira).
"A medida mais importante do século XIX foi aprovada graças à corrupção instigada e favorecida pelo homem mais puro da América", conclui o congressista Thaddeus Stevens, fervoroso anti-esclavagista, quase ao cair do pano deste filme desnecessariamente longo e propositadamente rodado em ambiente nocturno. Não por acaso, este é o Lincoln da fase derradeira, nos seus últimos três meses de existência, com mandato revalidado nas urnas de voto e a caminho da imortalidade através dos disparos fatais do assassino que lhe roubou a vida e o elevou a mártir. Perante o general Ulysses Grant, abismado ao verificar que o seu interlocutor parecera envelhecer dez anos num só, o 16º presidente confessa-lhe: "A fadiga roeu-me até aos ossos."
Fadiga física mas sobretudo fadiga moral. Porque o governo "do povo, pelo povo e para o povo", em nome de um objectivo nobre, liquidou corpos e perverteu espíritos. Há um lado negro em todos os heróis. Spielberg ilumina-o no seu Lincoln, dirigido com a intensidade e a espessura de uma tragédia shakesperiana, e cheio de ressonâncias bíblicas. Conseguimos ler, na mente torturada deste Abraham Lincoln crepuscular, a mesma interrogação de Jesus face aos discípulos: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se depois perde a sua alma?"
Lincoln (2012). De Steven Spielberg. Com Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Jason Gordon-Levitt, James Spader, Hal Holbrook, Tommy Lee Jones, John Hawkes