Exercício de... português?
Acabo de ter acesso, através de uma mãe desesperada, a este exercício de português para o 10º ano:
«Funcionamento da língua:
1. A coesão* referencial do texto assenta, sobretudo, na co-referência anafórica pronominal que assegura os segmentos do discurso.
1.1. Considerando o referente «eu» (v.3), apresenta:
a) uma catáfora
b) os co-referentes anafóricos pronominais da segunda volta
c) duas elipses.»
(*A "coesão" é definida desta forma, para quem tiver dúvidas: «o termo que designa os mecanismos linguísticos de sequencialização que instituem continuidade semântica entre diferentes elementos da superfície textual». Logo, «"coesão referencial" é a interdependência de fragmentos textuais assinalada por co-referentes, dando origem a uma cadeia referencial». Esta açorda linguística vem acompanhada de outros mimos igualmente perceptíveis, tais como: coesão interfásica, temporo-aspectual, co-referência anafórica, coesão lexical, etc. Tudo muito coeso e facílimo, como se vê.)
Ainda vou na primeira volta e já estou em estado catafórico. Dou graças aos céus por já não ter filhos (e ainda não ter netos) em idade de precisarem de ajuda com os trabalhos de casa, porque me sentiria pouco mais do que atrasada mental. O drama é, afinal, muito mais extenso do que a imposição de um estúpido e inútil acordo ortográfico. O problema de fundo é que o funcionamento da língua não funciona.
Adenda: Não resisto a trazer a esta discussão o contributo da grande Natália Correia. É preciso chamar os bois pelos nomes, e poucos o fizeram como ela. Neste caso, as vacas (sagradas?).
Língua Mater Dolorosa
Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada
de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luís Vaz a chama joalhada
tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada
foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,
eis-te bobo da corja coribântica:
a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.
Já na glote és cascalho és malho és míngua,
de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.