Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Estrelas de cinema (14)

Pedro Correia, 26.01.13

 

ADEUS ÀS LÁGRIMAS

****

E se Ernest Hemingway, esse mestre do paradoxo, não tivesse escrito Adeus às Armas, um dos mais belos e amargos romances de guerra e amor de todos os tempos? A Humanidade teria sido privada de uma obra fundamental da literatura do século XX. E nós, cinéfilos do século XXI, ficaríamos privados daquele que é um dos melhores filmes em cartaz neste início de 2013. Um filme que nos baralha, oscilando quase sempre naquele fio da navalha entre o drama e a comédia que só cineastas acima da mediania como David O. Russell (que assinou o excelente Último Round, em 2010) conseguem arriscar com êxito.

É um filme que, enfrentando a corrente dominante, nos aponta o mundo como um local onde a esperança ainda é possível - contra as prédicas de todos os gurus da comunicação, de todos os analistas políticos, de todos os sociólogos de turno, de todos os tarefeiros da informação, de todos os psicólogos de pacotilha submetidos ao lema "quanto pior, melhor". Um filme que nos fala da importância dos laços humanos como a mais antiga, mais moderna, mais eterna, mais eficaz, mais inultrapassável das terapias. Um filme que não nos traz figuras modelares nem vazias belezas esculturais nem pessoas semelhantes a estátuas: traz-nos personagens coerentes e credíveis, gente de todos os dias, parentes ou amigos ou vizinhos de um bairro onde podia morar qualquer de nós, o leitor ou eu.

Silver Linings Playbook devolve-nos um ingrediente fundamental que a Sétima Arte nos proporcionava antes de se ter cansado de o fazer por recear que isso fosse algo fora de moda: o prazer de contar uma boa história e de a desenvolver ignorando olimpicamente a pequena legião de críticos que detesta qualquer filme destinado a chegar ao fim com mais sorrisos que lágrimas.

 

Preparem-se para conhecer Pat Solatano: não é uma pessoa de feitio fácil nem custa perceber por que motivo esteve internado oito meses numa instituição psiquiátrica de Baltimore. Resguardem-se dos seus ataques de mau génio e esperem o pior quando ele recusar tomar a medicação contra a doença bipolar que contribuiu para lhe arruinar o casamento.

Mas acreditem, como ele jamais deixará de acreditar, que na vida - à semelhança do que sucede no cinema - é sempre possível um happy ending, mesmo que isso pareça utópico ou indigno desta época em que as únicas imagens sempre prontas a vender, nas telas de cinema ou nos telejornais, são as que nos falam em tragédias.

Digno candidato a oito Óscares da Academia de Hollywood, este Guia para um Final Feliz (boa tradução portuguesa do título original, derivado do romance homónimo de Matthew Quick e adaptado ao cinema pelo próprio Russell) faz jus ao título. Com nomeações para melhor filme, melhor realização, melhor argumento adaptado, melhor montagem e também para este notável quarteto de actores: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence  (magnífico e magnético desempenho, já distinguido com o Globo de Ouro), Jacki Weaver e o grande Robert de Niro, autêntica lenda viva do cinema, vendo aqui justamente realçado o seu trabalho como secundário num papel muito diferente daqueles que lhe deram fama mundial em filmes como O Padrinho II, Taxi Driver, O Caçador ou O Touro Enraivecido.

Enquanto é exibido o genérico final, à nossa volta não faltam rostos risonhos: há filmes capazes de nos pôr naturalmente a sorrir - e este é um deles. Não será um marco inesquecível do cinema contemporâneo, mas a direcção de actores é primorosa, a química entre os dois principais intérpretes funciona na perfeição e apetece-nos ver novas longas-metragens com qualquer deles (Jennifer Lawrence já me havia fascinado há dois anos no fabuloso Despojos de Inverno, de Debra Granik).

À saída, dou por mim a trautear Ma Chérie Amour, de Stevie Wonder, e a pensar como seria bem diferente o trágico destino de Catherine Barkley se Adeus às Armas tivesse sido escrito por David Cooper em vez de Hemingway.

 

 

Guia para um Final Feliz (Silver Linings Playbook, 2012). De David O. Russell. Com Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert de Niro, Jacki Weaver, Chris Tucker, Anupam Kher, John Ortiz, Shea Whigham, Julia Stiles, Brea Bee.

2 comentários

  • Imagem de perfil

    Laura Ramos 26.01.2013

    J.J.amarante: assino por baixo. Partilho dessa visão crítica.
    Ainda que o meu primeiro grande filme francês, aí pelos 15 anos, tenha sido "assez déprimant"... e ao mesmo tempo "assez troublant" ... Era o belíssimo Thérèse Desqueyeroux, que eu já conhecia do romance de Mauriac, então adaptado ao cinema.
    Do autor ao realizador: eis um caminho importante que trilhei então, criticamente, pela primeira vez.
    A voz da Europa no cinema é, entre os conceptualistas-intelectualistas (tontos) e os 'sages-pratiques' monoritários, uma via em vias de extinção.
    Culpa dos primeiros.
  • Comentar:

    Mais

    Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

    Este blog tem comentários moderados.