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Delito de Opinião

Parar de novo para ver Gabriela

Pedro Correia, 18.01.13

 

Julgo que muitos dos leitores, tal como eu, foram acompanhando ao longo destes quatro meses Gabriela, a telenovela que a Globo produziu para assinalar o centenário do nascimento do mais universal dos escritores brasileiros - Jorge Amado, criador de Gabriela, Cravo e Canela (1958). Este fabuloso romance ambientado em Ilhéus, na década de 20 do século passado, durante o surto expansionista provocado pela exportação do cacau colhido nas fazendas do estado da Baía, já tinha sido transposto para o ecrã em 1975, também em formato de telenovela - e foi logo então êxito no Brasil, tal como seria dois anos mais tarde em Portugal, onde ajudou a mudar hábitos (o hábito de "ver novelas", desde logo), costumes e até a maneira de falar, devolvendo aos portugueses expressões que por cá já estavam mortas e enterradas ("teúda e manteúda", por exemplo).

 

Da versão original recuperou-se parte da magnífica banda sonora (incluindo o tema principal, composto por Dorival Caymmi), manteve-se parte substancial da adaptação dramatúrgica e recuperaram-se dois actores, embora em papéis diferentes: Ary Fontoura, que era o Doutor e agora interpretou o divertido coronel Coriolano Ribeiro, e o então galã José Wilker (dr. Mundinho Falcão) deu corpo ao coronel Jesuíno Mendonça, o mais antigalã possível. Sonia Braga, a Gabriela de 1975, esteve para ser desta vez Maria Machadão, a proprietária do Bataclan - centro de convívio social nocturno da vila - mas o papel acabou por ser (bem) confiado à cantora Ivete Sangalo. Outra boa escolha foi a da protagonista, agora a cargo de Juliana Paes.

 

 

Esta é uma Gabriela mais fiel ao texto original, sem o severo crivo da censura da versão anterior, rodada no auge da ditadura militar brasileira. Fala-se mais e mostra-se mais. De política, de sexo, de atavismos sociais em confronto com uma incipiente modernidade que desembarcava então no Brasil profundo, ainda dominado pelos descendentes dos desbravadores originais, para quem a única lei era a da bala e a justiça prevalecente equivalia à vontade do mais forte.

Esta Gabriela voltou a ser um sucesso no Brasil. E tornou-se um êxito também em Portugal, onde este domingo é exibido o último episódio: a SIC acertou em cheio ao incluí-la na sua programação. Frases desta telenovela - a que prefiro chamar telerromance, para distingui-la dessas produções em série, sem o menor interesse, que ocupam lugar nobre nos nossos canais generalistas - popularizaram-se no Brasil inteiro, provando que a qualidade dos diálogos da adaptação de 1975 não se perdeu nesta versão, mantendo-se ao nível da excelente direcção de actores (algo a que os autores portugueses de telenovelas deviam prestar muito mais atenção do que prestam).

 

"Jesus, Maria, José!" - a frase-chave da velha Dona Doroteia (personagem eliminada na versão de 1975) - é uma dessas expressões que conquistaram milhões de brasileiros e andam também já na boca de muitos portugueses que se tonaram fiéis espectadores desta Gabriela do século XXI. Outra, também proferida pela implacável Dona Doroteia (um extraordinário desempenho da veterana actriz Laura Cardoso): "O senhor é corno!" Outra ainda - esta ascendeu mesmo sem demora ao anedotário nacional brasileiro - é "Eu vou-lhe usar", a frase favorita do coronel Jesuíno à sua finada esposa, Dona Sinhazinha (interpretada nesta versão por Maitê Proença, sempre magnífica).

Território onde implacáveis coronéis das roças casavam com respeitosas senhoras de sociedade mas conviviam afinal com "damas moças", sempre sem questionarem a sacrossanta instituição do matrimónio, esta Ilhéus de Gabriela (que era a da infância e juventude de Jorge Amado) constitui um microcosmos de uma certa época, marcada pela hipocrisia das convenções sociais que só eram respeitadas na aparência. Que isto seja feito de forma implacável mas também divertida, em excelente português, graças a um naipe de talentosos actores bem dirigidos, e com um roteiro de qualidade, basta para explicar a popularidade deste telerromance, eficaz cruzamento de folhetim camiliano com um manual de sociologia política.

 

Como aconteceu com muita gente, também não perdi um episódio. E só lamento que os nossos melhores escritores não sejam também adaptados ao ecrã com a qualidade desta adaptação assinada por Walcyr Carrasco que tornou Jorge Amado um autor ainda mais popular e universal, 11 anos depois da sua morte.

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