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Delito de Opinião

A um amigo nunca se diz adeus

Pedro Correia, 14.01.13

À Xanda e à Dai

 

O que dizer a um amigo que sabemos contaminado pela doença fatal e condenado à morte em poucos dias? O que dizer a esse amigo com quem partilhámos tantas gargalhadas, tantas confidências, tantas horas de alegre convívio em dois continentes ao longo de um quarto de século?

Telefonei-lhe na véspera de Natal. Já não falávamos há várias semanas. Sabia-o já dependente de uma botija de oxigénio na maior parte do tempo. Mesmo assim, reconheci de imediato aquela voz para mim tão familiar, do outro lado da linha: com um pouco menos de fôlego mas ainda com um rasto bem audível da jovialidade de sempre.

"Então compadre, como vai isso?", perguntei ao padrinho da minha filha e parceiro de tantas horas de trabalho, de tantas tertúlias risonhas e tantos projectos felizmente concretizados.

Ele falou-me da luta tenaz que travava contra a doença. Os tratamentos mais recentes tinham-no feito perder todo o cabelo e grande parte da massa muscular. Mas mantinha intacta aquela agilidade mental que eu bem lhe conhecia e era um dos traços mais marcantes da sua personalidade, a par de um inesgotável sentido de humor. Nascido num mês de Junho - era Gémeos, como eu - tinha sabedoria suficiente para nunca se levar demasiado a sério, o que dizem ser uma das características mais indeléveis deste signo.

 

O que dizer a um amigo que sabemos estar a despedir-se da vida?

Dizemos o que nos dita o coração.

Desejei-lhe toda a força do mundo e a continuação da coragem sempre revelada durante quase dois anos de intenso combate à doença - insidiosa e traiçoeira, feita de recuos estratégicos e avanços fulminantes, em contínuos ziguezagues. "O que interessa o cabelo, João? Interessa é dar luta a isso."

A conversa suspendeu-se enfim. Estávamos ambos comovidos, estaríamos porventura ambos cientes de que não voltaríamos a dialogar.

 

 

E ao desligar o telefone vieram-me à memória, em espiral caleidoscópica, uma infinidade de bons momentos que foram pontuando uma relação de amizade sem qualquer sombra. Fragmentos de almoços à mesa do Afonso, no centro histórico de Macau, ou de jantares no Fernando, na praia de Hac Sá, em Coloane. Ou irrepetíveis serões de boémia, rematados no Lok Un, na ilha da Taipa - espécie de cabaré chinês dos anos 50 transposto para a década de 80 daquela inimitável noite macaense. Expedições de fim de semana a Hong Kong, com paragem obrigatória nas ilhas de Lamma e Cheung Chau. Ambos a escrevermos copiosos artigos satíricos, em vetustas máquinas de escrever, num velho semanário macaense que ajudámos a revitalizar. Trabalhávamos imenso - tarde adiante, noite fora - mas divertíamos-nos em idêntica proporção. Quando reuni uma equipa de colaboradores para fundar um novo semanário por terras do Oriente, foi nele que logo pensei em primeiro lugar - e prestou sempre um precioso contributo a vários títulos, designadamente como copy desk, tarefa em que foi um dos melhores profissionais que conheci.

 

Lembrei-me de muito mais. Do apoio que me deu quando estive desempregado e que eu viria a ter oportunidade de lhe retribuir quando ficou ele sem trabalho. Dos dias que passei no belo apartamento dele, em São Miguel, e da paciência que teve para ser meu cicerone nos deslumbrantes circuitos da ilha, onde esteve radicado na última década. Dos encontros frequentes, em minha casa, nos anos em que viveu em Lisboa ou das minhas esporádicas deslocações ao Porto. De uma vez em que nos fizemos à estrada, debaixo de chuva, para um almoço prolongado quase a meio caminho entre as duas cidades - no Pedro dos Leitões - só para pormos a conversa em dia. E desta bela aventura que concretizámos, com um novo grupo de amigos, ao fundarmos o DELITO DE OPINIÃO, há quatro anos: o João foi desde o início um dos maiores entusiastas do projecto.

Aqui deixou centenas de textos que permanecerão à fácil disposição de quem queira revisitá-los porque o nome dele não se apagará da ficha técnica deste blogue, onde tinha paciência para ler todos os textos, responder a todos os comentários e ser um caça-gralhas a tempo inteiro: considerava, justificadamente, que os leitores nos merecem a consideração de lhes proporcionarmos textos isentos de erros.

E o João Carvalho, o meu amigo que hoje partiu, foi uma das pessoas mais atenciosas que conheci. Nunca se esquecia de assinalar os aniversários dos colegas, mesmo daqueles que não chegou a conhecer pessoalmente dada a sua localização geográfica - alternadamente nos Açores ou no Porto - o impedir de participar, em regra, nos nossos regulares jantares de convívio. Chegou no entanto a deslocar-se propositadamente de Ponta Delgada a Lisboa para não falhar um animado repasto natalício desta tribo, convicto - e cheio de razão - que os laços de amizade são um dos nossos bens mais preciosos. E poucas pessoas sabiam fazer amigos como ele.

Sintomaticamente, a última marca que aqui deixou foi um postal de parabéns a uma colega de blogue. Já muito doente, mas ainda fiel a um mandamento que sempre cultivou: a amizade é um posto, há que honrá-la a cada momento.

 

Como dizer-lhe adeus?

Não consigo. A um amigo como o João diz-se até sempre ou até já.

 

FOTO: o João Carvalho (à direita) em Macau, num cenário que lhe era familiar, com o João Severino, nosso amigo comum

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