Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Homem lobo do homem

José Navarro de Andrade, 11.01.13

Yang Zhengzhong, "Família feliz", 1995

 

Uma das novidades que poderemos considerar filosóficas do novo século é a nascente ordem natural que se começou formar nalgum senso comum.

Durante milénios havia uma linha na natureza que separava o animal racional (ou espiritual) do animal irracional ou instintivo. O ponto desta separação seria a Consciência – de si, do seu estatuto, da sua diferença e distinção face à Natureza. Nem valerá a pena dilucidar aqui esta coisa da “consciência” dada a abundância de tratados que versam sobre o tema só nos últimos 4.000 anos.

Esta fronteira está ser criticada e tem vindo a ser removida para outra região. Segundo os adeptos das teorias de Peter Singer (não resisto ao mau gosto de chamar a atenção para as suas dissertações sobre o infanticídio), satélites e discípulos, o “especismo” é um erro, ou seja, a discriminação entre animais segundo uma hierarquia de espécies não deve ocorrer porque, na sua particular interpretação darwiniana, se todos os organismos físicos estão num continuum natural, então também deve haver um continuum ético entre eles.

Deste modo a fronteira deve ser traçada entre, por uma parte, os animais “sencientes”, aqueles que estão biologicamente aptos a experimentar prazer e dor e os restantes, noutra parte. Na prática isto significa que entre ti, leitor, e o teu gato há uma identidade que não existe entre o teu gato e o carapau que ambos comeram ao almoço. A nivelação entre animais sencientes, tomados como um todo, procede de uma clara opção filosófica em que se dá primazia à esfera da ética sobre todos os outros campos do saber.

E é aqui que a porca (com o devido respeito) torce o rabo, porque se confunde a dor, que é um sistema de alarme fisiológico proporcionado pelo sistema nervoso, com “crueldade” que é o acto de provocar dor intencionalmente. “Intencionalmente” é de facto a palavra-chave: quando o leão ferra as suas mandíbulas no esófago e na carótida do búfalo, matando-o muito devagar por asfixia e exaustão, estará a ser cruel? Presumo que não, por uma simples razão: ele não é racional, logo não delibera em termos éticos, logo sabe o que é a dor mas ignora o que é a crueldade.

Usando outro caso concreto:

O Zico não teve culpa do seu acto, pelo que não deve ser abatido, reclamam os defensores de uma amnistia para o cão que atacou uma criança. Este argumento é fatal precisamente para quem o profere. Se o conceito de culpa não é imputável a um cão, quer dizer que a ética humana não cobre essa situação que entre os humanos seria clara. Ou seja, não há um continuum ético. Mais: se querem dar uma “segunda oportunidade” ao cão, que não a reivindicou (julgo) e não a reconhecerá (presumo que a um cão será estranho o conceito de mortalidade), o que estão a fazer é do mais radical etnocentrismo, pois pretendem impor os ditames éticos intrínsecos a uma espécie sobre outra.

Seria mais sensato exigirem que o cão fosse julgado por um coletivo de juízes constituído por um homem, uma vaca e um panda; pelo menos assim combater-se-ia coerentemente o especismo entre animais sencientes.

22 comentários

Comentar post

Pág. 1/2