Homens e bichos
Acho um absurdo ver mais pessoas a mobilizar-se por um animal do que por um ser humano. Desde a difusão mundial dos filmes produzidos por Walt Disney com as suas personagens antropomorfizadas, criou-se a convicção que os animaizinhos, coitadinhos, são iguaizinhos a nós. Rejeita-se a natureza em função da dimensão "cultural" dos bichos, fecha-se os olhos a essa evidência que é o instinto primário, faz-se de conta que nunca foi sequer inventada a palavra feroz - algo que soa a um inaceitável primitivismo.
Alarga-se o conceito rousseauniano do "bom selvagem" aos animais, que imaginamos imunes à contaminação do mal. E desembocamos nisto: 30 mil almas sensíveis em defesa de um enternecedor ão-ão que se limitou a "atacar" um bebé de ano e meio (o verbo "atacar" funciona aqui como eufemismo para iludir os factos) e ao qual deve ser concedida uma "segunda oportunidade" (tese quase obscena neste caso, pois cão que mata uma vez pode matar duas ou três).
Eis a doutrina Padre Américo em versão animal, com uns pós de Brecht: não há cachorros maus. A culpa não é do rio, mas das margens que o comprimem. Aliás, se o conceito de "reabilitação social" vigora para os seres humanos, porque não haveremos de lhe atribuir uma interpretação extensiva, colando-o às feras?
A propósito desta história com um final tão infeliz, interrogo-me: se o pitbull de Beja fosse poupado ao abate por um inesperado indulto, que espécie de futuro dono poderia dar guarida, sem o menor sobressalto de consciência, a um cão que levou uma criança à morte?
Apetece dizer-lhes que se vão catar. Não às bestas, mas aos bípedes.
Alterei o texto inicial, no penúltimo parágrafo, e actualizei o número dos peticionários