Inconstitucionalissimamente
1. Em finais de 2010, no primeiro orçamento que o parlamento irlandês aprovou depois de recorrer a auxílio externo, previa-se um esforço de equilíbrio das contas públicas de 6 mil milhões de euros, dos quais cerca de 3,9 mil milhões de euros eram cortes na despesa e, destes, cerca de 2 mil milhões eram cortes em salários e pensões. Por lá (onde, em 2007, antes da crise financeira, os gastos do Estado representavam 36,4% do PIB, contra 44,4% neste cantinho soalheiro), parece que é constitucional fazer coisas destas. A economia irlandesa, ajudada pelas exportações (por sua vez ajudadas pela taxa de IRC de 12,5% e, presumo, por sistemas de Justiça e burocracia menos kafkianos), já está a crescer desde 2011 (apenas cerca de 0,5% em 2012 but still). Se a economia europeia não atrapalhar, a taxa de desemprego (na ordem dos 14%) deverá começar a descer este ano.
2. Tipicamente, em Portugal as coisas são menos claras e demora-se muuuuuuuuito mais tempo a discuti-las. Apesar disso, no que respeita à Constituição, estamos perto de eliminar quase todas as dúvidas. Se fazer o esforço de correcção dos desequilíbrios do Estado recair algo mais sobre funcionários do próprio Estado e cortar pensões de reforma acima de 1350 euros por mês forem medidas inconstitucionais, restará apenas saber se ela foi elaborada por irresponsáveis ou tem precisamente por objectivo acautelar os interesses instalados em vez do interesse geral.
3. Se o chumbo acontecer, e ao contrário do que se ouve e lê por aí, o governo não necessitará de um plano B. Considerando que o A foi chumbado em 2012 pelo mesmo tribunal e que depois existiu a tentativa de reduzir a taxa social única, estaremos no mínimo perante a necessidade de um plano D. O que faz com que aquelas proclamações bombásticas sobre o governo estar a seguir um programa ideológico maquiavélico e bem definido só possam ser tentativas de humor. Quando muito, não constituísse a frase um oximoro, é maquiavélico porque não está bem definido.
4. Entretanto, em nota acessória a que não resisto, volta a ser enternecedor observar como tantas pessoas parecem acreditar que a decisão de um tribunal pode fazer a austeridade desaparecer.
5. Evidentemente, não fará. Evidentemente também, a grande questão é: se as medidas forem chumbadas, o que se passa a seguir? Bom, as taxas do IRS ainda estão longe dos 100% e há outras medidas que talvez sejam constitucionais: cortar a totalidade dos subsídios a todos os trabalhadores e parte das pensões a todos os pensionistas, reduzir comparticipações e períodos de apoio, reforçar co-pagamentos, etc. Mais ou menos a receita proposta no famigerado – e óbvio – relatório do FMI. Quem corta 4 mil milhões, corta 5 ou 5,5.
6. Pode ainda – se for constitucional, claro; nem a realidade é mais importante do que isso – despedir-se umas (muitas) dezenas de milhares de pessoas na função pública e respectivos anexos. Por exemplo, diminuir as Forças Armadas para, vá lá, trezentos humanos, dois cães, um carro de combate, um furgão de transporte de tropas (um camião seria exagero), um F16 e um Alouette, um barco a remos e, por motivos sentimentais (e quiçá constitucionais) o navio-escola Sagres, vendendo-se o restante equipamento a uma ditadura simpática (a quanto estará o quilo de submarino?).
7. E enquanto nos entretemos com estas fascinantes questões, só possíveis num país com uma Constituição demasiado perfeita (afinal, como quase todas as nossas leis), a incerteza faz a economia definhar: ninguém, nas escolas, hospitais, câmaras e museus, mas também nas empresas privadas, sabe que dinheiro terá disponível dentro de meses – ou semanas. Não importa: demora-se o tempo que for preciso e, revelando-se necessário, abraçados ao estandarte dos direitos adquiridos e da putativa igualdade entre sector público e privado, afundar-nos-emos todos juntos. (Enfim, se cortar pensões acima de 1350 euros por mês for inconstitucional, todos constituirá exagero.)
8. Porque – e, para apreciadores de humor negro, isto é verdadeiramente divertido – inconstitucionalidade a inconstitucionalidade, as hipóteses de sobrevivência deste Estado pesado e corroído por interesses, onde o governo mexeu até agora tão pouco que só pode concluir-se estar a tentar protegê-lo, vão diminuindo.
9. O que faz com que, em simultâneo, se vá delineando uma luta de classes paralela à tradicional (aquela entre pobres e ricos, com a burguesia – hoje conhecida por classe média – a servir de tampão): entre os que geram dinheiro e os que, sendo ricos ou remediados à custa do Estado, dele usufruem. Decorre de uma visão simplista e com uma pitada de maniqueísmo mas, nestes processos, tal é a modos que inevitável. Por exemplo, um maquinista da CP confessava há dias numa reportagem televisiva estar ciente de ser odiado. Pois.
10. Finalmente, e de modo a arredondar o número de pontos deste texto, já referi que a economia irlandesa está a crescer desde 2011?
Dados relativos à economia irlandesa: