Muito cedo na vida é demasiado tarde
Despedi-me ontem de uma tia na solidão cinzenta e gélida do crematório dos Olivais. Enquanto espreitava em fundo a estrutura arquitectónica que Santiago Calatrava concebeu para a Gare do Oriente e a feia floresta de cimento em que se transformou o Parque das Nações, ia pensando nos retratos que me habituei a ver desta tia nos velhos álbuns de família. Era uma mulher muito bonita, que nas décadas de 40 e 50 posava para as máquinas fotográficas como réplica das estrelas de Hollywood tão populares nessa época.
Olho hoje estas imagens e parecem-me saídas de uma era muito mais remota, envolta em névoa, em flagrante contraste com estes vertiginosos dias que vivemos.
Eram quatro irmãs - entre elas a minha mãe. Elos de uma família muito unida, embora espalhada pelas mais diversas paragens do globo. Esta tia era a primogénita - e também foi a primeira a partir, em sintonia com um princípio que devia ser obrigatório: sai mais cedo de cena quem primeiro cá chega.
Infelizmente não foi assim no caso dela: há quatro anos, de forma inesperada, morreu-lhe um filho, o mais velho, o primeiro de um clã de dez primos direitos de que faço parte, espécie de irmãos em segundo grau - sempre nos vi assim, sempre assim nos verei.
Quando o Zé embarcou na grande viagem sem regresso todos percebemos que ela, de algum modo, desistiria também de viver. A natureza é inclemente por definição. Mas nada é tão impiedoso como uma mãe que se vê condenada a enterrar um filho.
Ela assim o fez - destruída por dentro, aparentemente indestrutível por fora. Desde aí foi-se deixando entregar à morte aos poucos, como se cada folha suplementar do calendário já não lhe pertencesse por inteiro.
"Somos pó", ensinou-nos o salmista. Do pó viemos, ao pó voltamos.
Enquanto o sacerdote recitava as palavras que dos padres sempre se esperam, eu ia lembrando as imagens desta tia nos álbuns fotográficos. Em criança, adolescente, jovem adulta. Com os pais e as irmãs. Em Coimbra, na Figueira, nos anos felizes decorridos sob o sol africano, nas férias esporádicas na aldeia da Beira Baixa. Na última fotografia em que as quatro estão juntas, no dia do casamento dos meus pais, na Sé de Castelo Branco.
Tempos felizes, perpetuados nestas imagens a preto e branco. Com sorrisos rasgados para a eternidade, no tempo em que os dias se mediam pela imensidão dos sonhos. Elas voltaram a reunir-se muitas vezes depois disso. Mas nunca mais as quatro em simultâneo, nunca mais com uma máquina fotográfica a servir de testemunha, nunca mais com aqueles irrepetíveis rostos juvenis transbordantes de felicidade.
Partiu de vez, esta tia professora. Mas já tinha partido antes, de algum modo, sem se conformar com a despedida do filho piloto da Força Aérea, que não esperou por ela para abraçar a eternidade.
Na minha infância, só esporadicamente a encontrei. O meu avô era militar, revejo-o de farda imaculada nas fotografias, cumprindo várias comissões em África. As filhas receberam no berço este vírus da errância. Desde miúdo me habituei a ter parentes no Brasil, na América, em Cabo Verde, em Angola ou Moçambique. Uma das minhas tias nasceu em Malange, outra casou na Beira. Os meus pais viveram em locais tão diversos como a Alemanha ou Timor. As casas de todos nós tornaram-se inesgotáveis repositórios de recordações colhidas em cada destino perseguido e encontrado. Portugueses, cidadãos do mundo: transporto comigo este código genético, como uma espécie de tesouro íntimo. Vale mais do que todo o dinheiro à face da Terra.
Enquanto os funcionários da agência funerária desempenhavam a sua missão com sóbrio zelo, eu ia-me lembrando de duas prendas de aniversário que esta tia me deu. Um livro quando fiz nove anos, outro quando fiz dez. Antes disso, depois disso, ela estava a milhares de quilómetros de distância - em Díli, em Vila Luso, na Cidade da Praia - porque o marido, também militar como era o pai dela, meu avô, estava quase sempre longe. E ela esteve sempre com ele: foi um casamento de meio século, daqueles à moda antiga, que só se desfaziam quando um deles se cansava de viver.
Duas singelas prendas que jamais esqueci.
Não era muito de oferecer presentes, a minha tia. Mas por vezes basta um livro passar de uma mão adulta para uma mão de criança para que esta se lembre vida fora desse objecto como uma janela aberta aos inesgotáveis mistérios do mundo.
No crematório, tudo se conclui com eficiência mecânica: minutos volvidos, eis-nos devolvidos ao frenesim rotineiro da cidade. Encaminho-me a pé para o Parque das Nações pensando numa frase de Marguerite Duras: "Muito cedo na vida é demasiado tarde." Uma frase que fica a ecoar dentro de mim como um doloroso dobre de sinos neste agreste e melancólico Natal.
Imagem: interior do crematório dos Olivais, Lisboa (do blogue Lisboa S.O.S.)