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Delito de Opinião

Separar Saramago do joio

Rui Rocha, 16.11.12

Saramago faria hoje 90 anos. Dou comigo a pensar que preferia que tivesse sido estrangeiro. Que a distância não me tivesse impedido de ler aqueles dois ou três livros seus que me ficaram de deslumbramento. Frases com ideias dentro, lembro-me bem de notar embasbacado enquanto embarcava nessa Península Ibérica que se separava da Europa naquele primeiríssima Jangada de Pedra. Não o enredo, a estrutura narrativa, mas as ideias que brotavam a cada frase e que pareciam ser a justificação última do livro. Como se conversássemos. E que não me tivesse mesmo, se tivesse de ser, poupado aos outros que acabei por abandonar. Como no Ano da Morte de Ricardo Reis, em que me devo ter ficado pelos primeiros dias de Março. Mas que me preservasse dos pormenores, das birras, do feitio, da cegueira ideológica, da Pilar e de outros bicos. Como das próprias tricas e invejas que também lhe dedicaram. E da mesquinhez das contas da água e da luz da Fundação. Essa proximidade áspera incomoda-me, perturba-me a leitura. Por mim, Saramago seria norueguês ou chileno. Teria vindo cá nas férias. Andado de eléctrico em Lisboa, como fez Transtromer. Comido naquele restaurante da Póvoa de Lanhoso onde está pendurada na ramada uma fotografia de Jorge Amado a beber vinho verde e a comer bacalhau. Ou teria sido um português mais antigo. Como Pessoa ou Camões. Porque ser um português antigo é uma outra forma de nos ser estrangeiro. De interpor distância entre nós e a realidade. De filtrar a pessoa de modo a que só nos fiquem as palavras e a lenda. Não sei se Camões tinha dentes podres. E é reconfortante pensar que descobrir a verdade sobre isso impõe um grande esforço que não estou disposto a fazer. Claro que alguém já escreveu sobre o tema numa tese que mereceu todas as honras e distinções de um júri de uma universidade qualquer. Mas essa tese, que existe, estou certo, repousa agora onde lhe pertence, no fundo de um obscuro repositório. Quero tanto a ventania de alguma escrita de Saramago que o seu hálito tão próximo quase me magoa as mãos quando lhe pego nos livros. E sei também que esse incómodo diz mais sobre mim do que sobre o próprio escritor.  

3 comentários

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    Rui Rocha 16.11.2012

    Ora lá está.
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    E mais 16.11.2012

    "Penso eu de que" neste blog há quem saiba bem o que aquilo foi...
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