Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Divagações de Domingo

Ana Vidal, 04.11.12

 

É nos dias mais densos que me lembro deles com mais insistência. Corro à cozinha, rendida, para fazê-los e depois saboreá-los devagar, como de uma iguaria rara se tratasse. Deixo que me envolva o aroma inconfundível da manteiga já escura, quente e borbulhante, a pedir pão saloio, cheiro que me remete como poucos para o aconchego repousante da infância. Ficou célebre na família uma frase minha, muito pequena ainda e portanto sem filtros, em resposta à pergunta "quais as coisas de que gostas mais no mundo inteiro?". Dizem-me que respondi, sem hesitação, "do meu pai e de ovos estrelados". Prosaico, admito, mas inteiramente sincero. Com a minha mãe só muito mais tarde descobri e cultivei cumplicidades, nessa época ainda não a conhecia. Pertencíamos a mundos diversos que só a maturidade fundiu. O centro do meu era o meu pai porque tínhamos os mesmos gostos, a afinidade era total. Ambos amávamos a natureza, a música, o mar, os livros, a boa comida, o silêncio. Foi pela mão dele que conheci a Poesia, descoberta em puro estado de fascínio, ao sabor dos dedos, nas prateleiras enceradas da biblioteca que ele ia acrescentando sempre com esmero e prazer. Foi na voz dele, grave e pausada, que ouvi aventuras de mareantes e histórias exóticas de paragens longínquas, porque as viagens eram outra das suas paixões. Foi ele, enfim, quem abriu para mim as dobradiças do mundo e me desafiou a querer conhecê-lo cada vez mais. Guardo do meu pai, além de muitas conversas e de outros tantos silêncios partilhados, a memória indelével de um olhar inteligente, ao mesmo tempo sereno e divertido. É de memórias que somos feitos, são elas o plasma que une tudo o que faz sentido em nós. As minhas são-me tão preciosas como o ar que respiro.

 

Mas era de ovos estrelados que vos falava. Não faltarão Freuds de trazer por casa a lembrar-me de que há mil alegorias num ovo, e que muitas delas me serão caras. É verdade. Reconheço nele, sem resistência, o símbolo de um casulo seguro. De um universo completo, perfeito e frágil como é sempre o de uma infância feliz. De um tempo que já não volta, porque as despreocupações de então deram lugar às batalhas da vida real. Seja. Se o cheiro, o sabor e a alegria simples de um ovo estrelado me trazem renovadas forças para essas batalhas, que não me falte nunca esse consolo.

 

Vem isto a propósito deste belo e tocante texto do Pedro, que me lembrou o meu próprio pai. Os posts, como as conversas, são como as cerejas. Ou como os ovos estrelados. E é também por causa disso que aqui vos deixo um delicioso poema, de um querido amigo que comigo partilha o gosto por firmamentos gastronómicos.

 

O COMETA

 

Eu não quero que o cometa se conforme

Com a cauda que parece o condimento

Da panela sem pressão porém enorme

A que o homem chama só de firmamento

 

Eu não quero que a polar indique o norte

Nem consinto que uma ursa tenha o dom

De marcar o meu azar e a minha sorte

E o destino, seja mau ou seja bom

 

Eu prefiro o universo como o ovo

Unidade mãe da forma e pai da vida

Movimento que aparenta ser parado

 

De tão velho vira vivo e volta novo

E à chegada é mais um ponto de partida

Do orgulho racional de ser estrelado

 

(Manuel D’Orey Bobone, in “Se o Encontro me Acontece”)

22 comentários

Comentar post