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Delito de Opinião

Estendi o braço mas não cheguei lá

Pedro Correia, 01.11.12

Não sei se convosco é assim. Eu costumo ler vários livros ao mesmo tempo. Sempre fui um leitor voraz. Cheguei até, durante alguns anos, a fazer fichas de leitura detalhadas de todos os livros que ia lendo: a primeira sucedeu quando, deslumbrado, cheguei ao fim de Mau Tempo no Canal -- para mim o melhor romance português do século XX e com uma das mais fascinantes personagens femininas de toda a nossa literatura.

Comecei a ler muito cedo, estimulado por uma vasta biblioteca paterna, cheia de títulos incompreensíveis para o miúdo que eu então era. Graças a essa curiosidade difícil de saciar, aprendi a ler livros que ultrapassavam a minha idade à medida que os ia retirando das estantes. A Peste, de Camus. Conversas com Borges, de Georges Charbonnier. As Democracias Populares, de François Fejto. Os Cinco Comunismos, de Gilles Martinet.

E tantos outros, às vezes com autógrafos oferecidos ao meu pai -- de Júlio Dantas a Luiz Francisco Rebello, de Pedro Homem de Melo a Romeu Correia, de Armando Cortesão a Fernando Namora. Esses eram os que eu ia desfolhando com maior deslumbramento. Como se a dedicatória e o autógrafo prolongassem a sensação de que ao abrir um livro escancarava uma janela para o mundo. Havia também os que estavam "encadernados em pele de carneira", como então se dizia com alguma pompa. O Primo Basílio. As poesias completas (sempre incompletas) de Fernando Pessoa. A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro -- que descobri aos 15 anos, com o mesmo empolgamento de quem lera pouco antes os contos de Jack London com a chancela da editora Civilização, o Robinson Crusoe (da colecção juvenil da Portugália) e o Texas Jack (da Agência Portuguesa de Revistas). Os operários das fábricas de fiação da Covilhã faziam as vezes dos mosqueteiros da rainha, a "minha" Serra da Estrela substituía as Tulherias, o realismo socialista entrecruzava-se com aventuras de capa e espada.

 

Voltei hoje a ver estes livros -- e tantos outros -- ao revisitar a biblioteca paterna, agora adormecida: há muito que nenhum novo título ali entra para fazer companhia aos demais. A larga secção de pedagogia -- incluindo os Piagets, que nunca me interessaram -- foi recentemente doada, vários outros talvez sigam em breve idêntico caminho. Mas há volumes de que nunca me separarei. Bonecos de Luz, com a letra larga e generosa de Romeu Correia na página de abertura -- a minha iniciação, ainda infantil, à literatura portuguesa. O livro que Brassai escreveu sobre Picasso -- retrato de uma época irrepetível. Goethe e Rilke traduzidos por Paulo Quintela. A primeira edição da biografia de Pessoa escrita por Gaspar Simões, psicanalista improvisado do "Menino de Sua Mãe".

Parecia-me tão grande, a biblioteca, quando eu era miúdo. Pareceu-me hoje mais pequena quando regressei nesta romagem de saudade: mesmo assim, cheia de obras que nunca terei tempo de ler. Sentei-me num cadeirão durante longos minutos, em silêncio, e senti-me um garoto outra vez. À espera que o meu pai chegasse a qualquer momento para me tirar aquele livro lá em cima, da última estante. Estendi o braço mas não cheguei lá.

 

Em véspera de Finados, reedito este texto que julgo corresponder ao que me pedem no sempre excelente Escrever é triste.

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