Da minha falta de produtividade ao terceiro homem, passando pelos buracos do queijo suíço
Adaptando mais uma frase imortal (para além de certíssima e to the point) do Ministro Vítor Gaspar, vem existindo um enorme desvio entre o número de posts que eu gostaria de produzir e o número que os meus dedos efectivamente alinhavam. Os motivos são fáceis de explicar: como as coisas andam, temo só conseguir repetir-me e, talvez mais importante, já nada me surpreende ou incomoda. Aliás, para ser sincero, nos últimos meses apenas as surpresas alheias mantinham capacidade para me surpreender. Agora nem isso. Um exemplo: anteontem ouvi o presidente da União das Misericórdias afirmar que encontrou um português trabalhando num café da Suíça que lhe disse ganhar mais do que o Presidente Cavaco Silva (certamente merece-o), concluindo daí que é preciso confrontar os responsáveis europeus sobre aquilo que a Troika está a impôr a Portugal, e já nem revirei os olhos. Não parece passar pela cabeça de tão insigne personagem, atarefado a ajudar os pobrezinhos, metido num fato de corte impecável, sentado num carro alemão de muitas dezenas de milhares de euros, auferindo provavelmente também ele um salário mais elevado do que o do Presidente da República (quiçá do que o do empregado do café; a propósito: estaria na Suíça em serviço?), como, de resto, não passa pela cabeça de tantos outros, entre os quais muitos ex-governantes cá do burgo, que os países onde um empregado de café ganha milhares de euros por mês fizeram por atingir esse nível de vida no passado e fazem hoje por mantê-lo. Não deve ser preciso explicar por que é tanto dinheiro entra na Suíça mas, para se perceber a diferença, talvez seja conveniente avançar meia dúzia de razões. Desde logo, estabilidade e cumprimento de regras. Depois (inspirar fundo): equipamento industrial, medicamentos, relógios, chocolates, bolachas, cereais de pequeno-almoço, queijos, canivetes, serviços financeiros, turismo; tudo áreas onde, por mérito próprio, os suíços são expoentes de qualidade e prestígio, não precisando de concorrer apenas com base no factor preço. É isto que lhes permite terem o nível de vida que têm; que lhes permite auferirem os tais salários e disporem de auto-estradas baratas e de mais túneis do que... enfim, do que um queijo suíço. Nós não temos economia para tal e nunca estivemos perto de a construir. Só achámos (pelos vistos, ainda achamos) ter direito aos benefícios que lhe estão associados. Uma espécie de direito divino ao que outros conquistaram através do trabalho e da competência. Com esta mentalidade, pode alguém levar-nos a sério? E, honestamente, ainda valerá a pena clamar contra isto? Não mudámos ao longo de séculos, também não vai ser agora. Vou mas é dar descanso aos dedos.
P.S.: Claro que, como dizia Harry Lime n'O Terceiro Homem (numa adenda de Orson Welles ao argumento original de Graham Greene), em Itália, durante três décadas sob os Bórgia, houve morte e terror mas surgiram Michelangelo, Leonardo Da Vinci e o Renascimento; na Suíça, em quinhentos anos de paz e democracia, chegou-se ao relógio de cuco. Se as coisas continuarem a piorar (Otelo, talvez a revolução não seja afinal má ideia), podemos sempre manter esperanças de que, no futuro, esta seja vista como uma das mais brilhantes épocas da arte portuguesa. Mas atenção: também neste campo a concorrência é feroz e, com a octogenária D. Cecilia, Espanha já nos leva avanço.
(Imagem obtida aqui.)