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Delito de Opinião

Um orçamento que não se pode executar

Rui Rocha, 16.10.12

O Orçamento ontem apresentado por Vítor Gaspar não tem execução prática possível. Esta inviabilidade resulta de condições objectivas (natureza das medidas e contexto económico) e de condições subjectivas (estas relacionadas com quem as executa). Vejamos:

 

a) Condições objectivas: Portugal não é, em 2012/2013, o mesmo país onde o FMI interveio em 1983/1985. Claro. Já não temos moeda própria que possamos desvalorizar. E isso faz muita diferença. Mas, não é tudo. Há um outro dado fundamental que é preciso considerar no processo de ajustamento: o do endividamento das famílias:

 

 

Os dois gráficos traduxem bem a evolução da situação. A capacidade de ajustamento das famílias é hoje, como se vê, muito mais limitada. Mas há mais. Se tivermos em conta que uma parte do endividamento diz respeito à compra de habitação logo veremos que estamos perante uma situação de elevada rigidez. Neste cenário, o aumento brutal da carga fiscal previsto no OE 2013 só pode ter como consequência uma acentuada retracção no consumo, impossível de compensar por via de exportações. A hipótese de uma espiral recessiva é bem mais do que isso. Não se trata, portanto, de uma questão de opção ideológica por políticas de austeridade ou de crescimento (estas igualmente inviáveis nas actuais circunstâncias). Antes disso está a realidade. E sendo esta a realidade só é possível concluir que o cenário macroeconómico implícito (PIB: -1%; Consumo: - 2,2%; Taxa de  Desemprego: 16,4%) é, com alguma benevolência, um cenário macroastrológico. Objectivamente, as famílias portuguesas não podem pagar aquilo que o Estado lhes vai pedir.

 

Todavia, este não é, sequer, o problema fundamental da proposta de Orçamento para 2013. Se fosse, uma análise séria do seu mérito teria ainda que passar pelas avaliação de alternativas e pela análise dos objectivos do documento. Por exemplo, apesar de ser inexequível, o orçamento poderia permitir comprar algum tempo ou testemunhar mais uma vez a disponibilidade dos portugueses para suportar sacrifícios, tudo com a intenção de credibilizar uma negociação de um corte de cabelo decente daqui por uns meses. Porém, o problema fundamental está nas condições subjectivas de execução.

 

b) Condições subjectivas: este Governo, em concreto, não tem condições para executar este concreto orçamento. Procurando ser sintético, diria que lhe falta discurso, percurso, curso e coesão:

 

discurso - o Governo foi eleito com a promessa de não aumentar a carga fiscal, de não cortar remunerações, de reformar o Estado e de ser contido nas nomeações partidarárias. Fez tudo ao contrário. Ou Passos Coelho sabia da situação do país e mentiu ou não sabia e devia demitir-se por impossibilidade de dar cumprimento ao que prometeu. A legitimidade democrática obtida em eleições não pode servir para fazer tudo e o seu contrário.

percurso - o nível de sacrifícios exigido aos portugueses (e este deve ser medido em face da sua capacidade concreta de se ajustarem conforme foi referido mais acima) só pode ser pedido por quem apresente, para além da legitimidade do discurso, a autoridade do percurso. Lamentavelmente, um angariador de contratos da Tecnoforma e um gestor experiente das tricas das distritais do PSD, com sólida formação em tardes de sueca e bisca lambida, não cumprem os requisitos.  

curso - o de Miguel Relvas, naturalmente. A crise actual não se enfrenta a partir de uma dissonância cognitiva. A exigência para uns não é compatível com a permissividade para outros. Na bancarrota, os meios são escassos. Mas a gestão do simbólico não depende da existência de recursos materiais. Na actual circunstância, é mortal para a credibilidade de um governo que na percepção da opinião pública se tenha confundido licenciatura com licenciosidade.

coesão - a da coligação. Não é possível convencer os portugueses da bondade das soluções encontradas quando a própria maioria que suporta o governo dá sinais evidentes de falta de apoio.

 

Neste contexto, a falta de legitimidade, autoridade e credibilidade do governo levarão inevitavelmente a uma reacção social significativa. Os que desvalorizam as manifestações dos últimos dias, não interpretam correctamente o sentimento de uma maioria que ainda se mantém silenciosa. Antes que esta se torne incontrolável, é necessário renovar as condições políticas de condução do país. Note-se que dificilmente se poderá defender que essas condições serão renovadas com composições de interesses de iniciativa presidencial. A falta de legitimidade manter-se-ia, por maioria de razão. As eleições servem, antes de mais, para assegurar a transição pacífica do poder. Mais tarde ou mais cedo, chegaremos à conclusão de que é necessário deixar que cumpram novamente essa missão. 

2 comentários

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    Rui Rocha 16.10.2012

    O meio frango estatístico é sempre um problema, Luís. Por outro lado, a curva do endividamento em percentagem do rendimento disponível é muito eloquente.
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