Medidas estruturais vs Medidas conjunturais
Muito se tem escrito (e dito) desde que foi vertida a primeira gota de austeridade, com muitos a oporem-se a essas medidas difíceis, clamando, ao invés, por mais “crescimento”. Como se sabe, o governo está à partida limitado pelas metas acordadas com a troika na negociação feita ainda pelo governo PS. Desconheço se o governo tem ou teve alguma vez capital político para persuadir a troika a aligeirar as metas estabelecidas, como é muitas vezes sugerido. A verdade é que dá poucos sinais de querer em alguma ocasião tomar esse caminho. Seja qual for o caso, não impede que se faça um exercício académico sobre aquela que deveria ter sido, desde o início, a sugestão da própria Troika e a bandeira do Governo.
Para este exercício é necessário distinguir dois tipos de medidas apenas aparentemente semelhantes. Um aumento do IVA ou a eliminação do 13º mês, por exemplo, não estão na mesma gaveta de um corte no pessoal da administração pública ou de uma diminuição nos gastos da saúde (já para não falar nas poupanças com as PPP e com as fundações, mas essas parecem ser agora consensuais). É que se estas são medidas que visam alterar a estrutura do Estado (e já deveriam ter sido tomadas há muitos anos), aquelas resultam essencialmente da actual conjuntura, que obriga o Estado a tomar medidas extraordinárias para conter o crescimento automático do défice.
Acontece que estes dois tipos de medidas têm sido tratados como iguais, tanto pela oposição como pela troika, estando ambas as partes interessadas apenas (com visões diversas, naturalmente) nos fins, ignorando as diferenças nos meios. Assim, do lado do governo (que é como quem diz, do PSD), que segue a Troika, temos uma ortodoxia plena (postiça ou não), enquanto da parte dos partidos da extrema-esquerda (aos quais o PS se junta sempre que pode) vemos uma oposição permanente a qualquer tipo de medida.
Ora, a medida agregada para o défice orçamental que tem sido usada permite que se confundam, na argumentação política, os dois tipos de medidas elencados acima. Existe, todavia, uma medida do défice que, embora com limitações, permite distinguir as medidas estruturais daquelas apenas conjunturais, dando possibilidade, consequentemente, de dirigir esforços apenas para as primeiras, ignorando aquelas que se tornam necessárias apenas pela conjuntura económica (e que, pior, se vão auto-alimentando). Trata-se do défice primário estrutural: primário porque não contabiliza o serviço da dívida; e, mais importante, estrutural porque é ajustado do ciclo (ao assumir o PIB potencial, estando expurgado, mas palavras do próprio Ministério das Finanças “de medidas com efeito temporário quer do lado da receita quer do lado da despesa”).
Para clarificar a diferença que a adopção desta medida de défice faria, repare-se que na conjuntura actual, o governo não só não está a intervir com uma política orçamental expansionista (contra-cíclica) para compensar a retracção da procura interna privada, como defenderiam os keynesianos, como nem sequer fica inerte: está, isso sim, activamente a retrair a própria procura do Estado e a penalizar ainda mais a procura privada, ajudando à queda do produto. Acresce que, como referido acima, este caminho torna, mais cedo ou mais tarde, necessárias medidas adicionais, uma vez que ao provocar uma diminuição do rendimento e do emprego, o Estado gera uma diminuição das suas próprias receitas (com impostos) e a um aumento das despesas (com subsídios de desemprego, por exemplo), forçando, como aconteceu, o governo a tomar mais medidas de austeridade, as quais, por seu turno, tenderão a perpetuar um ciclo vicioso.
Era, portanto, sobre o défice primário estrutural que deveria incidir o objectivo da Troika, uma vez que permitiria ao governo seguir imperturbado um caminho as alterações estruturais necessárias no funcionamento do Estado (e da própria economia), sem se desviar para uma estrada que conduz ao atrofio da economia e que, em última análise, prejudica aos objectivos das próprias instituições internacionais.
Para ilustrar essa realidade, note-se que a consolidação orçamental tem sido relativamente bem-sucedida à luz desta medida: depois de défices de 5.6% e 2.2% em 2010 e 2011, respectivamente, o Governo prevê (admitindo que desta vez não se engana) um superavit de 0.5% este ano, seguido de outros de 2.3% e 3.5%, em 2013 e 2014, respectivamente.
Em suma, o Estado necessita, forçosamente, de ser reformado, de molde a assegurar a sustentabilidade das próximas gerações e a dar condições ao sector privado para ocupar o seu espaço natural, fomentando a concorrência e o fazendo cumpria a lei. Todavia, ao tomar essas medidas urgentes a par de outras que não beneficiam ninguém (como por exemplo a subida do IVA na restauração, que diminuiu simultaneamente as receitas dos restaurantes como as do Estado), o governo arrisca-se seriamente a projectar o país num precipício, dando razão justamente àqueles que pretendem evitar que sejam tomadas as reformas necessárias.