Dos livros
Raphaelle Peale, "Natureza morta com livro e laranja", 1815
A minha infância foi enriquecida por uma personagem fantástica que nunca conheci pessoalmente. Dava pelo bizarro nome de Largartixa e exercia um ofício hoje tão impossível como intrigante: era vendedor de livros porta-a-porta. O meu pai seria certamente um dos alvos prediletos desse senhor e de tempos a tempos descarregava em casa cartapácios como a enciclopédia Grolier em 20 volumes, ou a história mundial da Unesco em 10 valentes tomos, perante a estupefacção de minha mãe. O pai não tinha resistido a mais uma passagem do sr. Lagartixa pelo escritório; “é por causa do miúdo”, justificava-se sem grande convicção no argumento – era ele que gostava desses livros, de livros. E essa doença maligna e incurável acabou por me contaminar.
Nada do que o sr. Lagartixa vendia era impostura ou frívolo e tudo seria suficientemente caro para que meu pai tivesse que pagar em prestações durante largos meses, à confiança. Por causa dele tive à mão enciclopédias que muito me entretiveram e beneficiaram. Porém, hoje um sr. Lagartixa seria impossível, também porque se deve ter desvanecido uma clientela curiosa e cultivada (mais do que propriamente culta) que dava valor aos livros, pelo menos em quantidade suficiente para garantir a subsistência com os seus périplos pelos escritórios de Lisboa. Mas sobretudo porque aquilo que o sr. Lagartixa preciosamente vendia, está hoje disponível por inteiro e de graça na net.
Não cesso de me admirar com a massa de informação que consigo extrair da net. Já li o fac-simile de um registo testamentário de 1867 depositado na conservatória de Constância; já me informei acerca do preço do trigo na Lonja de Córdova; deu trabalho, mas consegui dar com a biografia do sr. Dick Brandt, o fundador da OMC em Yubba City; já recolhi para citação umas frases naturalmente jocosas de Camilo acerca do Presidente da Câmara de Lisboa em 1890, isto depois de ter lido nas actas da Assembleia da República algumas das suas intervenções parlamentares; já vi com detalhe algumas questões relativas à guerra do Biafra; já li por inteiro o fabuloso e esgotado “Através dos Campos” (€150 num alfarrabista) de José da Silva Picão; já vi como Michel Bras cozinha o seu famoso gargouillou (impossível de reproduzir em casa…). A lista seria interminável, tanto como os temas que me passassem pela cabeça pesquisar. Na verdade, pouca é a informação que preciso de encontrar fora da net.
Parece-me também claro que uma pessoa só pode atirar-se a este oceano e nele pescar o que pretende, se antes tiver aprendido a nadar – talvez fosse pertinente que a escola o ensinasse.