Isto não é um conto
Faço contas de mercearia: o deve e o haver em folhas distintas. Não chega.
Há números que significam dinheiro e não chegam.
A vida é tão rara, canta o Lenine. Mas eu não tenho qualquer paciência e não posso parar e, por isso, refaço as contas. É o meu exercício de ignorante enquanto empresária e começo por ser empresária na minha família. O deve e o haver.
Nunca compreendi os números, admito. Dois e dois são quatro? Ok, mas se um dois estiver grávido? Pois. O excesso de imaginação tem estas coisas. Daqui a uns dias, o atelier que mantenho fará 16 anos e tem os dias contados. Daqui a uns dias o meu avô irá morrer. Já sabemos todos. Posso recusar a ideia, mas é certo.
A vida é tão rara. Mas como não tenho paciência e não há cura para o mal, o Lenine de novo, nem posso exercitar o acto de dignidade de sofrer o que for. O sofrimento pode ser um número muito comprido. Pode ser um telefonema que terei de fazer a um fornecedor para dizer... O deve e haver. Se isto fosse um conto, que não é, é a minha vidinha, seria indiferente, porque a literatura é uma suspensão. Na verdade, tudo isto é uma fuga, porque eu queria era ver as asas do meu avô em direcção ao céu.