Ao menos a república
Comemorar a República é uma redundância. A República é tão evidente que resiste ao ultraje da bandeira içada ao contrário, ao discurso pavorosamente anódino do Presidente, à ausência acobardada do Primeiro-Ministro e à prestimosa atenção que as televisões deram à pobre senhora que invadiu os Paços do Concelho, abrindo um notável precedente aos próximos desagradados que desejarem tempo de antena.
Na verdade os únicos que celebram decentemente a república são os monárquicos. Por uma vez alheiam-se das rancorosas questiúnculas em que andam envolvidos há 102 anos, interrompem as verrinosas disputas em torno de árvores genealógicas, pouquíssimas anteriores a 1850, ou seja mais jovens do que um pinheiro manso que está lá no quintal, e suspendem a bacoca exibição de petulâncias para as revistas cor-de-rosa.
Neste dia 5 de Outubro e ao contrário do que sucedeu há 102 anos, os monárquicos vociferam à uma certas nulidades sobre o regime, apontando a Escandinávia como o suprassumo da democracia coroada como quem diz que “democracia” e “monarquia” fossem consequência e causa indissociáveis. Mas tal como há 102 se esqueceram de engrossar o punhado de fuzis que Paiva Couceiro debalde tentou arregimentar durante todo o dia 5 de Outubro, saltitando pateticamente de regimento em regimento só para dar com portões fechados, também agora os monárquicos lusos se esquecem de elogiar as primícias de monarquias como a da Arábia Saudita, a do Brunei ou – a melhor de todas – a do Nepal, cujo príncipe herdeiro, decerto por via da excelsa educação recebida, metralhou toda a família num jantar à conta de um namorico mal aceite pela mãe – mimosos regimes estas monarquias, sem dúvida.
Repare-se na foto supra. O reizinho, sua mamã e avó roçam os veludos no estreito areal da Ericeira, prestes a embarcarem no iate real, donde partirão para sempre da nossa costa. Lá cima, no paredão, despontam as cabecinhas dos populares observando tão pungente espectáculo – em silêncio absoluto, segundo rezam as crónicas coevas. Podia lá ser mais triste a decadência última dos Braganças.
É verdade que a I República foi uma trafulhice, a II uma ditadura e esta III já não está a correr tão bem como devia. Face isto, a actual putativa cabeça coroada, não deslustrando a podridão miguelista do seus genes, e nem um pio, quanto mais uma palavra de conforto, dele temos ouvido. Fica assim provado que tudo poderia ser ainda pior, fosse Portugal uma monarquia em vez de república.