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Delito de Opinião

Memória de Jorge e Zélia

Pedro Correia, 10.08.12

 

"Em três palácios de governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e de vagabundos."

Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

 

Com o atrevimento dos meus 18 anos, postei-me um dia à entrada do Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade, na esperança de poder entrevistar Jorge Amado para um semanário regional de que era colaborador nas horas vagas dos meus estudos. Bastara-me ler num jornal a notícia de que o grande escritor brasileiro se encontrava novamente entre nós para zarpar rumo ao hotel, onde o casal Amado sempre se instalava nas suas frequentes deslocações a Lisboa.

Os meus esforços foram recompensados. Ao fim de um par de horas sentado no vasto átrio central do Tivoli, vi surgir da rua o autor de São Jorge dos Ilhéus. Trazia um boné de marinheiro e uma camisa estampada, de cores garridas. A seu lado, a mulher, Zélia, companheira inseparável das suas deambulações em redor do globo, de sorriso permanente no rosto.

Dirigi-me de imediato a eles, apresentando-me e confessando-lhes a intenção de marcar dia e hora para uma entrevista. Para meu espanto, a conversa desenrolou-se logo ali, num dos sofás do piso térreo do hotel. Durante mais de meia hora, o consagrado autor brasileiro respondeu a todas as perguntas que entendi fazer-lhe. Com uma abertura e uma bonomia que seriam impensáveis na esmagadora maioria dos escritores portugueses, muito cientes da sua enfadonha importância.

Por vezes, a risonha Zélia intrometia-se na conversa e completava algumas das respostas do marido. Transmitiam a imagem de um casal fadado com o raro dom da harmonia conjugal. Nascidos um para o outro, como reza o lugar-comum. Mais tarde, ao ler os livros de memórias de ambos, confirmaria a impressão que deles retive nesse início da década de 80, quando Jorge Amado gozava de uma popularidade ímpar em Portugal. Escassos três anos antes, a telenovela Gabriela - extraída de um dos seus principais romances, Gabriela, Cravo e Canela - fora campeã absoluta de audiências entre nós, a ponto de fazer adiar sessões parlamentares e até reuniões do Conselho de Ministros. O País inteiro vibrava com os encontros e desencontros do Doutor Mundinho, do Coronel Ramiro, de Jerusa e Malvina, de seu Nacib e da fogosa Gabriela, interpretada por Sónia Braga em início de carreira.

 

Dessa conversa com Jorge Amado trouxe um autógrafo de valor inestimável num dos seus livros que já povoavam a minha biblioteca, ainda muito incipiente, um artigo que rapidamente redigi para o jornal de que era colaborador e uma recordação inesquecível. Aquele homem habituado a dialogar com os grandes do mundo, que fora amigo de Neruda e Picasso, concedera mais de meia hora do seu tempo a um garoto que se aproximara dele para uma entrevista sem marcação prévia.

Um ano depois, já eu era jornalista profissional num semanário de âmbito nacional, a cena repetiu-se. Voltei a abordar o casal Amado no mesmo local e voltámos a conversar, desta vez ainda com mais tempo. Da conversa nasceu uma extensa entrevista de duas páginas que teve natural destaque no jornal. Vim de lá com outro livro autografado e a convicção reforçada de que os melhores escritores não têm necessariamente de assumir pose intelectual. O Jorge Amado que eu via à minha frente  tinha a mesma desarmante simplicidade que transparecia dos seus livros - que serão sempre da minha vida, que serão sempre das vidas de milhões de seres humanos, incluindo muitos que nunca foram ao Brasil e não sabem sequer uma palavra do nosso idioma. Livros que o autor de Tenda dos Milagres começou a escrever ainda muito jovem, praticamente ainda adolescente, mas que constituem um fabuloso fresco das classes humildes do grande país irmão - e do estado da Baía em particular. Livros como Jubiabá, Mar Morto e Capitães da Areia, redigidos na década de 30 numa prosa inimitável, prosa que se confunde com poesia, cheia dos sons da rua, num português cadenciado e musical, muito marcado por múltiplos sotaques, romances onde a vida pulsa, tão vibrantes hoje como no momento em que foram escritos. 

 

Muitos anos depois desse meu encontro inicial com Jorge Amado em Lisboa, redescobri a mesma personalidade franca, acolhedora e despretensiosa nas páginas de um notável livro de memórias, intitulado Navegação de Cabotagem. Sem traço de soberba. "Em três palácios de governo relembrei que sou apenas um romancista de putas e de vagabundos", assinalava ele, fiel ao seu estilo de sempre.

Neste dia em que se assinala o centenário do seu nascimento, recordo com particular emoção as personagens de Jorge Amado nos livros que constituem o mais precioso legado deste escritor que devia ter sido distinguido com o Nobel da Literatura. O António Balduíno, de Jubiabá. Pedro Bala, Gato e Volta-Seca, de Capitães da Areia. O Guma, desse maravilhoso e encantatório Mar Morto. A inesquecível Gabriela. A Tieta do Agreste. A Dona Flor, que tinha dois maridos.

Personagens locais e regionais. Mas também personagens universais. Graças à arte irrepetível de Jorge Amado, aquele senhor de cabelos brancos, bigode e camisa colorida que um dia acedeu em conversar com um jornalista em início de carreira, de um obscuro periódico regional, como se estivesse a dialogar com um veterano profissional do Le Monde ou do New York Times.

Parece que foi há dois dias e já se passaram trinta anos. Zélia e Jorge: brasileiros de gema, portugueses do coração, cidadãos do mundo. Um casal feliz. Jamais esquecerei as gargalhadas de ambos, à entrada do Tivoli: sinto-as reverberar pela eternidade.

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