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Delito de Opinião

Coisas sérias como o défice público, o ministro Relvas ou o bispo Torgal

José António Abreu, 18.07.12

Em tempos não muito distantes, à rapariga aplicar-se-iam expressões como «abundante de carnes» ou «cheiinha», usadas num tom onde se detectaria mais apreço do que crítica. Noutros, mais recuados, seria pulposa e levaria pintores a proporem-se pintá-la nua, com o argumento de ser perfeita para representar Vénus saindo do mar ou recostada num canapé. Tem pele branca que, ao ser atingida pelo sol, irradia luz como a face de Greta Garbo nos velhos filmes a preto e branco. (É provável que não se lembrem mas, logo na minha primeira colaboração com o Delito, deixei claro que pele branca está longe de me ser desagradável.) Segue pelo passeio à minha frente, segurando o telemóvel junto à orelha direita com a mão do mesmo lado enquanto, com a esquerda, vai puxando o vestido para cima. O vestido, aliás, merece uma palavra. É branco, largo (esvoaçante, mesmo) e não tem alças. Parece segurar-se apenas por acção de uma tira elástica, franzida, de uns cinco centímetros de largura, que cruza as omoplatas e passa por baixo dos braços e por cima das mamas (que eu, da posição em que me encontro, não consigo ver). Há outra tira elástica, estreitinha, na zona da cintura mas dá ideia de nem estar a fazer pressão sobre esta, destinando-se apenas a efeitos estéticos. O vestido é curto, muito curto, deixando pelo menos metade das coxas (brancas, muito brancas) a descoberto, mais até quando a rapariga, a cada trinta ou quarenta metros, puxa a tira elástica para junto da axila, a mão esquerda fechando um triângulo isósceles em que os outros lados são o braço e o antebraço. Atrás dela, vou-me perguntando se o fará por excesso de precaução ou se existirá mesmo risco de o vestido lhe deslizar suavemente pelo corpo abaixo. O meu lado malévolo deseja-o, claro, e até o imagina (mas vocês, que nem sequer viram a rapariga, parem com isso). Quanto ao meu lado simpático e prestável, esse sente vontade de ajudar: de lhe colocar uma mão de cada lado do corpo, mesmo por baixo dos braços, e de dar um bom puxão (para cima!) no vestido. Depois digo-me que provavelmente ela reagiria de forma pouco simpática, o que só demonstra que as boas acções são muitas vezes incompreendidas ou que o bem e o mal se encontram frequentemente misturados (mas a sério, foi um impulso caridoso). Continuo apenas atrás dela, sorrindo perante os seus esforços (por que raio escolheu aquele vestido se lhe dá tanto trabalho?) e pensando que talvez lhe pudesse antes segurar o telemóvel junto ao ouvido, de forma a permitir-lhe usar ambas as mãos para colocar o vestido no sítio. E então, subitamente, caio em mim. Que diabo estou a fazer, observando o comportamento de raparigas de vinte e poucos anos, ou talvez nem tanto (de costas é difícil ter a certeza), em vez de pensar em assuntos sérios como o défice público, a licenciatura do ministro Relvas, as visões infernais do bispo Torgal, as pulsões revolucionárias do octogenário Soares ou, já agora, o meu trabalho? Aproveito a circunstância de a rapariga entrar num café para, sem mesmo olhar lá para dentro, seguir caminho, decidido a passar o resto do dia concentrado nos tais assuntos realmente importantes. Em passo rápido, indiferente ao calor, recusando novas distracções, demoro poucos minutos a chegar aqui, junto ao computador, onde passo a hora seguinte a escrever isto.

 

P.S.: O corrector ortográfico do Word assinala «pulposa» e «pulsões» como sendo erros. É um corrector tão politicamente correcto...

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