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Delito de Opinião

O essencial, sem rodeios

José António Abreu, 20.06.12
Devo abordar o essencial. A sociedade contemporânea, aliás, não aceita outra coisa. Nada de dispersão, nada de acessório, apenas e sempre o essencial, qualquer que ele seja a cada instante. Por estes dias, como de resto sucede frequentemente, o essencial é o futebol e, mais especificamente, o campeonato da Europa de futebol (parece que no fim-de-semana passado também ocorreu qualquer coisa importante na Grécia mas, como tende a suceder neste mundo em que apenas o essencial é essencial e poucas coisas são essenciais durante longos períodos, depressa perdeu relevância, podendo ser ignorado até conseguir reunir argumentos para aspirar à essencialidade durante mais algum tempo). Ora sendo o essencial o futebol, eu ainda não escrevi sobre o tema. Na verdade, escrevo até muito pouco sobre futebol. Não pode ser. É preciso que quem escreve em blogues, e especialmente em blogues colectivos, tenha noção de que os interesses das pessoas que lêem blogues, e especialmente blogues colectivos, não são assim tão distintos dos dos cidadãos normais, aqueles que andam demasiado ocupados para ler o que quer que seja a não ser rodapés de noticiários televisivos e etiquetas com indicação de descontos em promoções de hipermercados, e, por conseguinte, também desejam textos sobre os temas essenciais do momento. De resto, torna-se necessário reconhecer que não escrever sobre futebol numa época em que ele é essencial coloca um problema sério a qualquer leitor de blogues: como pode usar a caixa de comentários para elogiar ou criticar as opiniões e previsões de quem escreve (acto absolutamente essencial na blogosfera) se elas não existem (será possível não ter opiniões sobre futebol?) ou não são explicitadas (um perfeito acto de cobardia)? Afinal, até onde julgo poder ir a selecção portuguesa? Considero provável que Ronaldo volte a marcar? Se o fizer, deverá chuchar outra vez no dedo, arriscando o lançamento de uma moda que talvez ainda nos permita ver advogados imitando-lhe o gesto após a absolvição dos seus clientes ou Vítor Gaspar fazendo o mesmo depois da aprovação de mais um pacote de austeridade? Acho que Postiga devia ceder o lugar a Nelson Oliveira – ou deveria perdê-lo para Manoel de Oliveira? Considero as declarações de Manuel José e Carlos Queiroz motivadas por inveja do lugar ocupado por Paulo Bento ou pela capacidade de expressão deste? Prefiro o 4-4-2, o 4-3-3 ou o 4,5-π-(10-4,5-π)? Gostaria que fosse dada oportunidade a Ronaldo para mudar de penteado também durante os encontros e não apenas ao intervalo? É essencial opinar sobre estes assuntos, entrar nas polémicas de peito feito e sorriso franco, à Rui Santos menos os fatos Boss (lamento desiludir-vos, mas encontram-se um tudo-nada acima do meu orçamento), em vez de assobiar para o lado e me limitar a publicar fotografias insossas (já viram a de hoje?) e contos nojentos (leram o da semana passada?). Pois bem, assim farei e é já, a vinte e quatro horas do Portugal – República Checa, tempo suficiente para que se gere discussão inflamada em torno das minhas afirmações (certamente polémicas, ainda que não venham a passar de frases feitas – ou talvez especialmente nesse caso) e abrindo a possibilidade para que, depois do jogo, dezenas de pessoas me possam vir pedir satisfações pelos erros improváveis mas – sou ainda mais humano do que vocês – sempre possíveis. De modo nenhum me deixarei distrair, pondo-me, por exemplo, a imaginar outros confrontos entre portugueses e checos, como Lobo Antunes contra Kafka, Saramago contra Hrabal, Mário de Carvalho contra Hašek ou M. Tavares contra Kundera (teria também usado escritoras mas acabei de perceber com, juro!, genuíno horror que desconheço escritoras checas) quando o verdadeiro e único confronto que interessa é entre Cristiano Ronaldo e Milan Baros. Seria até ridículo fazê-lo, como o são todos os desvios, todos os rodeios, todas as circunvoluções, tendência e defeito apontado muitas vezes aos portugueses mas de forma ó quão injusta, que afinal conseguimos concentrar-nos no essencial tão bem como qualquer outro povo, em particular quando o essencial é o futebol, o que, de resto, já o escrevi mais acima, ocorre muitas vezes, circunstância que já devia ter feito desaparecer o lugar-comum mas convenhamos, num único aparte essencial, que um dos problemas dos lugares-comuns é mesmo esse, demorarem a passar ainda que já não façam sentido. Seja como for, a verdade é que quando o assunto é o essencial e o essencial é o futebol ninguém nos ultrapassa na concentração, ninguém nos faz cair em divagações irrelevantes. Quando o assunto é o essencial, somos campeões – campeões! – muito à frente de quaisquer outros. Por exemplo, considerem a Rússia. A mesma Rússia que entrou neste campeonato cheia de força, ganhando  à República Checa (que, para nossa sorte, já não pode contar com a distribuição de jogo do saudoso Vaclav Havel) por uma cabazada a quase nada e depois se distraiu e acabou de regresso a casa onde, felizmente, o Gulag passou de moda. Estranho? Claro que não. Vêm de longe, as distracções e divagações russas. Lembro-me – e rio-me de comiseração – do livro Almas Mortas, de Gogol, onde a certa altura é organizada uma assembleia para discutir os actos de Chichikov, o tal que anda pelas redondezas a comprar almas mortas (isto é, direitos sobre servos já falecidos). São aventadas diversas hipóteses para tal comportamento mas nenhuma parece satisfatória. De súbito, o director dos Correios, «que até então se mantivera mergulhado não se sabe em que profundos pensamentos», declara que Chichikov só pode ser o capitão Kopeikine. «Sim, nem mais nem menos, o capitão Kopeikine!» Os restantes perguntam: mas quem é o capitão Kopeikine? Chocado por ninguém conhecer o capitão Kopeikine, o director dos Correios ocupa várias páginas a explicar quem é o capitão Kopeikine. Trata-se de um soldado que perdeu um braço e uma perna na campanha de 1812 e que, não conseguindo arranjar emprego nem tendo o pai meios para o sustentar, vai a São Petersburgo pedir ao Czar uma pensão por invalidez. Passadas as dificuldades da viagem, enfrentados os problemas que uma cidade grande e impessoal coloca a um inválido, o capitão Kopeikine lá consegue, após longa espera, uma audiência com um ministro. Este diz-lhe que vai tratar do assunto e pede-lhe para voltar dentro de dias. O capitão Kopeikine fica tão aliviado que vai jantar uma costeleta com molho de alcaparras e um frango à jardineira, acompanhados por uma boa garrafa de vinho, após o que se desloca ao teatro. Dias mais tarde volta a procurar o ministro, que lhe diz não ter ainda uma resposta para ele. Das vezes seguintes, nem sequer consegue falar com o ministro, pois logo à entrada dizem-lhe que nesse dia não há audiências. A situação começa a ficar desesperada e o capitão Kopeikine usa um estratagema para entrar (finge que é acompanhante de um general) e perguntar ao ministro pelo sua pensão. O ministro diz-lhe que nada está decidido e, quando o capitão Kopeikine perde a cabeça e afirma que não sai dali sem uma resposta, o ministro diz-lhe, com inesperada gentileza, que pois muito bem, lhe vai arranjar alojamento. Surge então um homem enorme, com cerca de um metro e noventa de altura, que agarra no capitão Kopeikine e o mete dentro de uma carroça, não se sabe para onde. Sabe-se é que meses mais tarde aparece um bando de salteadores cujo líder não é outro senão... Neste ponto do relato, o chefe da polícia interrompe o director dos Correios. É que, afirmara-o o director dos Correios, o capitão Kopeikine perdera um braço e uma perna; ora Chichikov... O director dos Correios solta um grito, dá uma grande palmada na testa e desfaz-se em desculpas. Claro que Chichikov não pode ser o capitão Kopeikine. Como é possível que o pormenor do braço e da perna a mais lhe tivesse passado despercebido? Enfim: patético, não é? Como são volúveis, os russos, sempre predispostos para a dispersão, nunca centrados no essencial. Nós não. E eu muito menos. É por isso que abordarei sem delongas nem tergiversações o tema do futebol e, mais especificamente, o da participação portuguesa no Euro.

Há-de correr bem.

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