Com David Silva, o tiki-taka rumo à tiki-tura
O tiki-taka, mais do que futebol, é bola. E há equipas de futebol que detestam a bola. Maltratam-na. Dão-lhe pontapés. Algumas até aliviam. A bola é tormento. Quando a afastam, suspiram de alívio. Não se pode jogar tiki-taka sem amor, posse, partilha e saudade. Da bola. Quem tiki-taka quer bola. E quando passa, tem sempre esperança de a reaver. O tiki-taka é um jogo de crianças que adquiriu maturidade. Que percebeu que pode ser gratificante dar e receber. O tiki-taka nunca foi uma táctica (a tiki-táktica). Mais do que a disposição da equipa no campo, o que importa é a posição dos jogadores em relação à bola. Em busca da proximidade, do contacto, de um afago. E é provável que o tiki-taka, na versão mais pura, não possa funcionar como estratégia (a tiki-tégia). Para ser uma estratégia futebolística, teria de ter a intencionalidade do golo. Ora, a consequência do golo é a perda de posse de bola. Uma contradição com a essência do tiki-taka. Digo que o destino do tiki-taka é tornar-se uma manifestação cultural. A tiki-tura. Com uma estética. A tiki-tética. Os jogos serão manifestos. Ou instalações. Os campeonatos de tiki-taka disputar-se-ão em Florença, na Piazza del Duomo. Os jogadores equiparão com os trajes de luzes do toureio. Os relatos trocarão a ansiedade pelo temple e pela pausa. As transmissões televisivas não irão bem com cerveja e tremoços. E serão instalados écrans gigantes na Ópera de Viena. Podem não ter percebido, mas Silva deu um passo decisivo nesse sentido no jogo da Espanha contra a Irlanda. Até agora, o tiki-taka sempre fora mais tiki do que taka. Muito tiki-tiki no meio-campo. Mas, perto da baliza, remate, pontapé ou cabeçada. Com Silva, descobrimos a dimensão ataka do tiki-taka. Quando dominou a bola, mais do que isso, parou o tempo. E não procurou, como se faz no futebol, descolocar os adversários. Pelo contrário, com o fio do tempo suspenso, indicou-lhes, com uma finta de corpo, o ponto exacto do espaço em que se deviam colocar. Depois, não rematou. Passou para as redes. No passo seguinte da evolução, um avançado fará uma tabela com o poste da baliza adeversária, prescindindo do golo em nome da perpetuação da posse de bola. Nesse dia, o tiki-taka autonomizar-se-á do futebol. Não será modalidade olímpica. Mas poderá ganhar um Prémio Nobel ou a Palma de Ouro em Cannes.