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Delito de Opinião

O meu 25 de Abril

Ana Vidal, 25.04.09

Quando penso no que foi para mim o dia 25 de Abril de 1974 não posso deixar de esboçar um sorriso, entre divertido e envergonhado. É que esse dia, fulcral para a minha vida futura - e para a de todos nós, de uma forma ou de outra - foi vivido por mim como uma alucinante ficção, uma aventura inesperada numa qualquer twilight zone que eu desconhecia em absoluto, conduzida por um guião que podia ter saído da pena dos Monty Python. As razões desta alienação? É simples: em minha casa não se falava de política, pelo que eu e as minhas irmãs estavámos completamente a leste do paraíso. Aprendi no curso intensivo das ruas, da rádio e da televisão, nas semanas que se seguiram, tudo o que até aí me fora ocultado. Mas no "dia D", confesso, não percebi nada, a não ser que alguma coisa muito estranha se estava a passar à minha volta. E gostei da confusão, da alegria das pessoas, como qualquer adolescente que vê um turbilhão de novidades agitar a rotina, ainda que elas pareçam absurdas.

 

Começou logo de manhã, com a chegada ao liceu: os muros exteriores estavam pintados com palavras escritas a encarnado, em letras garrafais. Como não sabia o que queriam dizer, achei que era uma língua estrangeira. Afinal, as palavras eram PIDE (abaixo a...), FASCISMO (não ao...), etc. Depois seguiu-se a prisão de um contínuo (por sinal o que mais detestávamos), levado por militares que sorriam para nós e nos faziam sinais esquisitos com os dedos (o V da vitória, provavelmente). Não houve aulas todo o dia e acabámos por voltar para casa por recomendação explícita da minha mãe, que nos mandou buscar no fim da manhã. Seguiu-se a mais delirante programação televisiva de que tenho memória: bocados de episódios de séries americanas já desaparecidas alternando com músicas desconhecidas, e tudo isto permanentemente interrompido por uns barbudos vestidos de camuflados verdes e de metralhadora a tiracolo, que liam nervosamente  uns "comunicados" em folhas de papel amarrotadas, com ar circunspecto. Apelavam à calma e falavam em grandes mudanças, repetindo à exaustão palavras como "liberdade", "ditadura", "povo", etc. Eu estava calmíssima (bendita inconsciência!) mas muito divertida com tudo aquilo. O dia acabou com toda a população lá de casa colada ao televisor e à telefonia: os meus pais  sérios, numa tensão controlada,  a minha avó assustadíssima, as criadas (sim, tínhamos "criadas", peço desculpa...) aos gritinhos histéricos por verem tantos magalas por todo o lado, e ainda mais ignorantes do que se passava do que nós, se é que isso era possível.

 

Os meses que se seguiram foram trepidantes, e quase tudo o que eu tinha como garantido até ali, deixou de sê-lo e mudou irreversivelmente. Para muito melhor, sei-o hoje. Mas a verdade é que a minha geração foi criada e educada para habitar um mundo que lhe desapareceu debaixo dos pés de um dia para o outro. Teve de apagar toda a matéria dada e seguir em frente, com nova cartilha.  

 

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