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Delito de Opinião

Os filmes das nossas vidas (4)

Teresa Ribeiro, 24.04.09

 

 ERA UMA VEZ NA AMÉRICA: AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ 

 

Saí do velho cinema Berna contrafeita. Apesar de o filme ser longo e intenso, o que me apetecia verdadeiramente era dar meia volta e tornar a vê-lo. Se não estivesse acompanhada, era o que faria. Nos ouvidos ainda me ecoava aquele sinistro som do telefone a tocar, o telefone que vibrou naquele dia fatídico, num daqueles dias em que a vida parece que nos engole. Era uma Vez na América tem em comum com outros tantos filmes que me marcaram uma narrativa labiríntica, em que passado e presente se misturam. Estou agora a lembrar-me de dois filmes assim: "O Paciente Inglês" e "O Padrinho II", neste último caso também com Robert De Niro. Se formos a ver, não há forma de narrar uma história de vida mais próxima da perfeição. Também a nossa se desenrola assim aos nossos olhos. Passado e presente sempre misturados, como um todo.

Sergio Leone, naquela que considero ser a sua obra-prima, conta-nos a história de Noodles (Robert De Niro), um rapazinho pobre que se faz nas ruas de Nova Iorque, com uma sensibilidade notável. Já vi muitos filmes sobre a América, nomeadamente filmes de gangsters (e é também disso que se trata aqui), mas este, mais do que um filme, é uma declaração de amor. Porque quando a realização é cuidada ao detalhe e os planos se sucedem sem pressas, não cedendo às conveniências comerciais, que aconselham uma certa agilidade na acção, quando as soluções encontradas para os avanços e recuos no tempo são sempre de uma elegância e originalidade surpreendentes, percebemos que estamos a ver uma obra de arte.
Não fosse a sua magistral prestação em “Touro Enraivecido”, “Taxi Driver” e “O Padrinho”, eu diria que De Niro encontrou em Noodles o papel da sua vida. Mas este actor é de facto grande demais para caber todo num só desempenho. Felizmente para nós, amantes de cinema, depois de 1984, ano em que foi estreado "Era Uma Vez na América", reencontrámo-lo várias vezes em papéis inesquecíveis. Mas, confesso, é neste filme que gosto mais de o ver. Extraordinária a transposição que Leone faz no tempo através da mímica deste actor, nomeadamente na passagem para o presente, com Noodles já no limiar da velhice. É certo que a caracterização nos situa imediatamente. Mas o cabelo enbranquecido e as rugas só nos dizem em que fase da vida da personagem é que estamos, ao passo que os gestos lentos, o olhar desencantado nos falam de toda a amargura que acumulou, do percurso que fez até ali. Que contraste com o olhar ainda cheio de esperança de 30 anos antes...
James Woods, diga-se em abono da justiça, também assina aqui uma das suas mais impressionantes interpretações. Ele é Max, o amigo a quem Noodles se liga desde a infância e cuja ambição acaba por destruir tudo e todos à sua volta. A sua ânsia de subir na vida incorpora a sede de que é feito o sonho americano: poder ser tudo e chegar lá, no matter how... A América das expectativas, da violência e da ingenuidade passa por este par: o vencido e o vencedor (primeiro potencial, depois virtual vencedor). Daí que este filme seja muito mais do que a narrativa da passagem de um homem pela vida. A contextualização da história de Noodles, rica em detalhes, confere a "Era Uma Vez na América" a dimensão de um épico, sublinhado a traço grosso pela partitura do grande Ennio Morricone.
Porque saí eu tão contrariada daquela sala de cinema, sem paciência para voltar à minha realidade? Porque não há nada mais perturbador do que assistir numa cadeira às voltas que a vida pode dar a um homem. Afinal todos nós temos que fazer escolhas e ao fazê-las optamos irreversivelmente por um destino, deixando para trás outra vida possível, muito provavelmente outra identidade. Mas o que nos incomoda mais é saber que há escolhas que nos são impostas por acidentes de percurso pelos quais não somos responsáveis. Essa fibra de que é feita a sorte e o azar é que nos transtorna, porque nos traz à consciência a nossa vulnerabilidade.
A profunda tristeza, plasmada nos olhos perdidos de Noodles na cena final do filme, que é também a primeira a que assistimos, antes de ficar a saber tudo o que lhe aconteceu, deixou-me incapaz de encarar com um mínimo de interesse a estúpida perspectiva de em seguida ir lanchar à Versailles.
 
Texto já publicado aqui

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