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Delito de Opinião

Há males que vêm por bem

Pedro Correia, 03.05.12

Na livraria do costume, no centro de Lisboa, folheio algumas novidades literárias. Há um livro sobretudo que me prende a atenção: E a Noite Roda, romance de estreia de Alexandra Lucas Coelho. Antes de mais pela autora, uma jornalista cujo percurso há muito acompanho e admiro - primeiro na rádio, depois na imprensa. A seguir, pela capa: acho-a excelente. E, claro, pela chancela editorial - é um lançamento da Tinta da China, uma das melhores editoras portuguesas.

Leio algumas linhas das páginas iniciais, como também sempre costumo fazer. A surpresa não é grande, mas nem isso evita a decepção: o livro está impresso em acordês. Logo me lembro das palavras certeiras de um texto de Luciano Amaral, lidas há dias, no Diário Económico: «O Acordo Ortográfico baseia-se num princípio contraditório: uniformizar a partir da fonética. Ora, precisamente, a fonética divide mais do que unifica. É por isso que os portugueses devem passar a escrever 'receção' mas os brasileiros continuam com 'recepção', o mesmo acontecendo com 'exceção' e 'excepção', e muitas outras. A escrita portuguesa e a brasileira não vão ficar unificadas. No final, em termos estritamente ortográficos, o Acordo não é bom nem mau, ou pelo menos é tão mau como o que existe. É mau porque inútil e desnecessário: não resolve nada e unifica pouco. E sobretudo é mau por introduzir confusão onde os escreventes de português tinham já encontrado alguma estabilidade. Com tanta coisa para nos preocupar, ainda faltava começar a dar erros sem na verdade os dar.»

Resultado: restituo o romance ao seu lugar no escaparate. Por sorte a secção de livros usados está cheia de boas "novidades", a preços módicos. Trago três - tudo ficção estrangeira traduzida para português por escritores que tinham que recorrer às traduções para ganhar a vida. Foi assim que Jorge de Sena traduziu O Fim da Aventura, de Graham Greene, Adolfo Casais Monteiro traduziu O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, e José Rodrigues Miguéis traduziu O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald - entre muitos outros exemplos.

O que trago desta inesperada colheita? As Torrentes da Primavera, de Hemingway, edição Minerva (um exemplar da célebre colecção Miniatura) com tradução de Alexandre Pinheiro Torres. O Pão da Mentira, de Horace McCoy (um romance de um autor hoje totalmente esquecido que li na adolescência e me deixou deslumbrado), com tradução de José Cardoso Pires. E A Centelha da Vida, de Erich-Maria Remarque (primeira edição portuguesa, das Publicações Europa-América, com data de 1955), traduzida por um tal José Saramago.

Cada uma destas obras - que valem por terem sido escritas por quem foram mas também por terem sido traduzidas pelos nomes que mencionei - custou-me entre dois e cinco euros.

Até um dia, E a Noite Roda. O acordês tem o mérito de me devolver o interesse por edições antigas. Em boa hora aconteceu. Uma vez mais se comprova o adágio: há males que vêm por bem.

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