Há males que vêm por bem
Na livraria do costume, no centro de Lisboa, folheio algumas novidades literárias. Há um livro sobretudo que me prende a atenção: E a Noite Roda, romance de estreia de Alexandra Lucas Coelho. Antes de mais pela autora, uma jornalista cujo percurso há muito acompanho e admiro - primeiro na rádio, depois na imprensa. A seguir, pela capa: acho-a excelente. E, claro, pela chancela editorial - é um lançamento da Tinta da China, uma das melhores editoras portuguesas.
Leio algumas linhas das páginas iniciais, como também sempre costumo fazer. A surpresa não é grande, mas nem isso evita a decepção: o livro está impresso em acordês. Logo me lembro das palavras certeiras de um texto de Luciano Amaral, lidas há dias, no Diário Económico: «O Acordo Ortográfico baseia-se num princípio contraditório: uniformizar a partir da fonética. Ora, precisamente, a fonética divide mais do que unifica. É por isso que os portugueses devem passar a escrever 'receção' mas os brasileiros continuam com 'recepção', o mesmo acontecendo com 'exceção' e 'excepção', e muitas outras. A escrita portuguesa e a brasileira não vão ficar unificadas. No final, em termos estritamente ortográficos, o Acordo não é bom nem mau, ou pelo menos é tão mau como o que existe. É mau porque inútil e desnecessário: não resolve nada e unifica pouco. E sobretudo é mau por introduzir confusão onde os escreventes de português tinham já encontrado alguma estabilidade. Com tanta coisa para nos preocupar, ainda faltava começar a dar erros sem na verdade os dar.»
Resultado: restituo o romance ao seu lugar no escaparate. Por sorte a secção de livros usados está cheia de boas "novidades", a preços módicos. Trago três - tudo ficção estrangeira traduzida para português por escritores que tinham que recorrer às traduções para ganhar a vida. Foi assim que Jorge de Sena traduziu O Fim da Aventura, de Graham Greene, Adolfo Casais Monteiro traduziu O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, e José Rodrigues Miguéis traduziu O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald - entre muitos outros exemplos.
O que trago desta inesperada colheita? As Torrentes da Primavera, de Hemingway, edição Minerva (um exemplar da célebre colecção Miniatura) com tradução de Alexandre Pinheiro Torres. O Pão da Mentira, de Horace McCoy (um romance de um autor hoje totalmente esquecido que li na adolescência e me deixou deslumbrado), com tradução de José Cardoso Pires. E A Centelha da Vida, de Erich-Maria Remarque (primeira edição portuguesa, das Publicações Europa-América, com data de 1955), traduzida por um tal José Saramago.
Cada uma destas obras - que valem por terem sido escritas por quem foram mas também por terem sido traduzidas pelos nomes que mencionei - custou-me entre dois e cinco euros.
Até um dia, E a Noite Roda. O acordês tem o mérito de me devolver o interesse por edições antigas. Em boa hora aconteceu. Uma vez mais se comprova o adágio: há males que vêm por bem.