How to cry with words
No Público de hoje, Miguel Esteves Cardoso escreve uma crónica lancinante. Escolhi este adjectivo criteriosamente, porquanto todos nós desenvolvemos ao longo da vida aquilo a que gostaria de poder chamar a reacção semântica. Reagimos às palavras com preconceito. Eu tenho essa atitude, muitas vezes. Lembro-me de já ter escrito por aí o quanto detesto a palavra comiseração. Li, algures, alguém que dizia ter sentido comiseração pelas manifestações de um amor a que não podia corresponder. É horrível. A comiseração sente-se de cima para baixo, é um ai-coitadinho-tenho-tanta-pena-de-de-ti-mas-não-posso-fazer-nada-estou-aqui-muito-bem.
A comiseração implica uma enorme e detestável sobranceria. É preferível não sentir nada. Digo eu, claro.
Voltando ao lancinante da primeira linha. A palavra pressupõe um cortejo lexical de peso, de lágrima, alguma complexidade sintáctica ao nível da hipotaxe, uma escolha de palavras-setas que entrem em cheio nos olhos do leitor. Pois. Mas, quem muito bem escreve, não precisa da parafrenália gongórica habitual. Depura as palavras que jorram e elas caem sobre a folha reduzidas ao essencial que tudo contém.
Maria João piorou. Diz o MEC:
A minha pessoa é a Maria João e a Maria João passa mal. Nem o amor nem a sabedoria médica a podem salvar. Só a conjugação das duas coisas, mais um acrescento de milagre. O cabrão do cancro alastra-se. (...) Hoje, domingo, é o último dia em que estaremos juntos (...) amanhã logo às nove estaremos na consulta (...) onde nos avisarão das complicações possíveis. (...) Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu amor por ela, nunca há-de morrer. As coisas acontecem sem acontecer o pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça são coisas diferentes. Que se dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando morrem.
É assim que se chora com palavras. Fazer milagres com elas, não sei como é.