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Delito de Opinião

Enfrentar o desconhecido

José António Abreu, 24.04.12

A primeira vez no deserto foi uma epifania. Não me interpretem mal. Só o conhecia do cinema e dos livros e humildemente admito sempre o ter encarado com prudente relutância.

“O deserto é como o esqueleto do ser, frugal, rarificado, austero, absolutamente bom para nada.” (1)

Tinha apontado religiosamente esta frase no bloco de notas antes de mergulhar no inevitável. “Absolutamente bom para nada”, pois. Mas há sempre uma primeira vez e devo confessar que tive sorte, muita sorte. Não é por acaso que as associações entre as areias e os mares são recorrentes. No “mar” de areia, o oásis é uma “ilha” e foi por aí mesmo que comecei. Pelo fragmento de deserto que é o seu contrário, o que não foi feito pela mãe Natureza mas pelo esforço dos homens. Habituámo-nos, todos, a imaginar os oásis como pequenos lagos arredondados protegidos por palmeiras. Devem existir oásis assim, mas não conheço nenhum. O da minha primeira vez foi uma preguiça estendida ao longo de trezentos quilómetros, entre maciços montanhosos. Nem redondo nem palmar. Apenas deslumbrante. Permitam, então, que vos conte.

Partimos de Aden, no Sul do Iémen, em dois Toyotas. Rumámos na direcção do Oriente. A estrada comportava-se bem, seguindo paralela à costa, até começar a desaparecer diante dos nossos olhos, submersa por ventos de areia que insistiam em mergulhar no Índico. Perto de um porto abandonado, imitámo-las. Creio que o fizemos como viemos ao mundo, ante o olhar complacente e distraído de uns quantos camelos. Refrescados, retomámos a rota, agora para Nordeste, em direcção das montanhas. Os jipes subiram durante uma boa hora. Tínhamos a estrada e a paisagem só para nós, quando um deles começou a ficar, a pouco e pouco, para trás. Naquela montanha careca e pedregosa, sem vivalma, o atrasado quase não subia e o dianteiro prometia vertigens na descida, o que viria a acontecer quando os seus travões se decidiram por uma greve de zelo. Lembrei-me logo de outra frase de bolso, que parecia feita de encomenda para a situação:

“Na cidade, a aventura é um evento excepcional num cenário normal; no deserto, é um acontecimento normal num fundo excepcional.” (2)

Numa curva larga da ascensão, o condutor da frente encostou e decidiu esperar pelos atrasados. Enquanto não chegavam, abriu a sua porta, desceu pela encosta umas dezenas de metros, procurou uma pedra lisa e em cima dela colocou uma lata de Coca-Cola. Depois regressou ao jipe e dele retirou a sua kalaschnikov e ainda uma pistola de fabrico soviético que guardava no porta-luvas. Acto contínuo, entregou-ma. Será que quer um duelo ao sol? Cogitei comigo mesmo. Não, apenas queria divertir-se à nossa custa. Em rigor, à minha custa. Tinha acabado de lhe colocar umas questões incómodas sobre a poligamia entre os árabes e agora era a sua vez.

Num lugar de nenhures, um tipo não se arma em pacifista. Oferece o peito ao destino, respira fundo e pede secretamente ao Altíssimo que o ajude. Ele deve ter-me inspirado porque ao primeiro tiro a lata voou com graça pelo ar. Inchado, passeei ao vento a minha altivez, tomada de empréstimo a Peter O’Toole em Lawrence da Arábia. Os árabes da expedição devem ter apreciado o estilo porque, a partir daí, me trataram como um senhor. Estava apto a entrar no deserto e a enfrentar o desconhecido.

Miguel Portas, in Périplo, páginas 67 e 68; Almedina, 2009.

 

(1) Edward Abbey, in Désert Solitaire, 1968, citado em Désirs de Desert; Autrement, hors série, 2000.

(2) Alain Laurent, in Désirs de Desert, pág. 22; Autrement, 2000.

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