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Delito de Opinião

A revolução dos cravos

José Navarro de Andrade, 25.04.12

Todas as revoluções do século XX português foram patéticas. Isto não diz tanto sobre a inépcia dos insurrectos quanto acerca do apodrecimento dos regimes desbancados.

Em 1910 bastou ao destemido Machado Santos reunir um punhado de milicianos e civis de índole rixosa, para que ao fim de uma jornada a monarquia tombasse inerme no chão. Bem andou Paiva Couceiro de quartel em quartel a supliciar pelo menos um pelotão, o suficiente para escorraçar os insurgentes da Rotunda – ninguém adiantou um tiro pelo reizinho. 

O 28 de Maio foi uma passeata a cavalo de Braga a Lisboa, com picnic em Coimbra. Sem saírem das repartições, os comandantes militares foram aderindo ao golpe por telégrafo, pelo que chegando Gomes da Costa às hortas do Campo Grande nem a Carbonária se quis sacrificar pela república.

Os generais portugueses gozam da justa fama de balofos e enfatuados. Estavam eles em 1961 a conspirar administrativamente à volta da mesa contra Salazar, já Craveiro trazia num saco a farda de gala com que iria proclamar ao país o novo governo, quando ouviram na rádio a notícia da sua demissão. Por ali se ficou a patética “abrilada”.

Teve então que ser muito por baixo, ao nível da patente de capitão, que pôde ser desmoronado o remanescente do Estado Novo, em 1974 não era mais do que uma caduca gerontocracia, tão autoritária quanto pusilânime.

Só mesmo uns rapazes com menos de 30 anos, os únicos que verdadeiramente sofreram a guerra na piolheira africana, entendiam o grotesco da situação em que Portugal se atolava. O que faziam capitães e mancebos nos pântanos da Guiné, nas florestas de Moçambique ou nos fins do mundo de Angola, terras de prodigiosa insalubridade e refractárias a qualquer progresso cívico ou económico, ninguém sabia ao certo, muito menos eles. Seguro apenas era terem que andar aos tiros contra sombras emboscadas no capim, em nome de um política incapaz de galvanizar uma ideia, uma frase que fosse, além de uma mancheia de abstrações arcaicas, doutrinadas numa retórica de sacristia e mal coladas com cuspo maurrassiano pelo misantropo de Santa Comba. “Vão p´ró mato, ó malandros!”, gritavam os Comandos, quando surtiam em missão, contra os intrépidos oficiais superiores barricados no ar condicionado dos quartéis generais.

Foram então os capitães do quadro que desceram à rua no dia 25 de Abril para vergonha de uma oposição política ao regime consumida em polémicas intestinas, conspirações de café e muitíssima indignação – uma figura de impotência que pasmava o mundo civilizado. Ao que parece só ao escritor Nuno Bragança terá ocorrido a ideia de que limpar o sebo a um ou dois pides poderia constituir um acto revolucionário mais incisivo do que greves estudantis ou soltar porcos com boné de almirante na Baixa lisboeta.

Taticamente previsível e logisticamente inepto, mandaria a lógica que o 25 de Abril se saldasse num dramático fracasso.

Salgueiro Maia cercou e conquistou o Terreiro do Paço enxotando uma coluna de blindados praticamente com a munição que trazia na câmara. O brigadeiro que se lhe opôs foi derrotado tanto pela desfaçatez do capitão quanto pela vergonha por que passou quando nem os magalas sob o seu comando obedeceram à ordem de fogo.

Durante essa manhã, o sagacíssimo Kaúlza contactou os oficiais de sua confiança com quem havia planeado o contra-golpe, para descobrir que fora ludibriado como uma donzela – eles estavam com o MFA. E era este o grande centurião do regime…

Sitiado no Carmo, Marcelo Caetano assistia atónito às manobras do diminuto coronel Ferrari as quais consistiam em telefonar para os quartéis da Guarda a saber se estavam com a situação. “Afirmativo”, asseguravam-lhe essas unidades, ao que o coronel rejubilava com tal triunfo sem que lhe passasse pela cabeça pô-las em movimento. Quando ao fim da tarde Salgueiro Maia usou a arma mais potente do dia, um megafone, unicamente Henrique Tenreiro teve presença de espírito para escapar dali, atravessando a multidão e a força militar disfarçado de ceguinho.

Tomando a lei à letra foi apenas às 7 da manhã do dia 26 que em boa verdade constitucional a revolução triunfou, quando alguém se lembrou de ir colher a sua casa o pasmado almirante Thomaz e metê-lo no avião para a Madeira onde já iam despachados uns quantos ministros que se deixaram apanhar. Devia ter sido ele, o Presidente da República, o alvo da rendição, porque era ele o detentor formal do poder de estado. 

Não nos deixemos iludir: o 25 de Abril não foi uma farsa, foi um acto de higiene, executado pelos únicos que intuíram, ao contrário das luminárias oposicionistas, que o IN se reduzia a um baralho de poltrões, inchados de bazófia – tudo bem à portuguesa.

A audácia e a leviandade são qualidades que contrariam o bom senso, é por isso muito fina a linha que separa o herói do irresponsável. Os Capitães de Abril foram heróicos porque imprudentes, demonstrando bravura à medida da insensatez. De outro modo, ainda hoje estaríamos à espera, ou alguém acredita que alguma vez tenha existido “sociedade civil” em Portugal?

2 comentários

  • Pior do que aos acasos, às incompetências da história...
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