Cadáver esquisito (10)
1. UM LIVRO, 2. CA...... SARKIS G........N, 3. OLHOS, 4. ESCAVAR, 5. IN VINO VERITAS, 6. TO THE LEFT, AS PERNAS DE STELLA, 7. O MEDALHÃO, 8. O SEGREDO, 9. LABIRINTOS
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FRAGMENTOS DE HISTÓRIA
– Entre, por favor. Sente-se.
João Cosme puxou uma cadeira para a inspectora enquanto Eduardo continuava a tentar lembrar-se de onde é que a conhecia. Acabou por decidir que tinha de ser da televisão. Devia lembrar-lhe Catarina Furtado naquela série policial da RTP.
– A que devemos a sua presença? – perguntou. Estava satisfeito por ter chegado a uma conclusão e ligeiramente excitado pela descoberta de que também na vida real há mulheres-polícia atraentes.
Helena Portas ignorou a cadeira e olhou em volta, avaliando o grupo.
– Moram todos aqui? – perguntou.
– Não – respondeu o professor José Augusto. – Nem eu nem a menina Stella aqui residimos.
A inspectora pareceu hesitar. Eduardo insistiu:
– A que devemos a visita da Judiciária?
– Estamos a investigar um assassínio.
No silêncio que se seguiu, o ruído de Valerya pousando a cafeteira sobre o fogão pareceu excessivo.
– Quem é que foi morto? – perguntou Eduardo.
Mas Helena Portas observava as costas de Valerya. Quando falou, fez à pergunta de Eduardo o que fizera à cadeira de João Cosme – ignorou-a.
– Segundo creio, várias das pessoas aqui presentes têm ligações à propriedade conhecida por Os Freixos, não é verdade? Algumas até lá moravam na altura em que foi destruída por um incêndio…
O olhar de João Cosme cruzou-se com o de Eduardo. Perguntou, brusco: – E o que é que isso tem a ver com o assassinato? Descobriram lá algum cadáver? Toda a gente sabe que na altura...
– Toma café, senhora inspectora? – perguntou Valerya.
A intervenção pareceu sobressaltar Helena Portas. – Não, obrigada. – Voltou a prestar atenção a João Cosme: – Dizia…
Mas Stella antecipou-se a Cosme:
– Senhora inspectora, eu não tenho nada a ver com este assunto. Posso ir-me embora?
– Deixe-se estar. Talvez ainda possa ajudar.
– Não, eu...
– Deixe-se estar.
Stella fez beicinho mas remeteu-se ao silêncio. De súbito, a inspectora reparou no livro, pousado em cima da mesa.
– Posso? – Sem esperar resposta, pegou-lhe e abriu-o. Houve um lampejo de reconhecimento nos seus olhos. – De quem é este livro?
– Apareceu cá em casa – explicou João Cosme. – O professor diz que deve ter pertencido a Calouste Gulbenkian.
– Não sabem quem o trouxe?
– Não – respondeu Cosme, enquanto Valerya se voltava de novo para o fogão.
Helena Portas mordeu o lábio inferior, levando Eduardo a pensar que talvez não fosse por causa das parecenças com Catarina Furtado que ele julgava conhecê-la.
– Como deverão saber, Calouste Gulbenkian era arménio. Já ouviram falar no genocídio arménio, ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial?
Só o professor José Augusto reagiu de forma clara:
– Com certeza. Mas o que é isso tem a ver connosco?
– Talvez nada. Mas o corpo que descobrimos… enfim, parece ser estrangeiro. E há histórias dessa época muito interessantes. Por exemplo, sabiam que quando Ataturk subiu ao poder na Turquia, em 1922, o último sultão do império otomano, Mehmet Sexto, fugiu para Malta levando com ele uma rapariga de dezoito anos? Ele já tinha mais de sessenta. Fê-lo contra a vontade dela, contra a vontade do pai dela, que fora jardineiro no palácio, e contra a vontade do noivo dela, um capitão da marinha.
João Cosme estava impaciente. Repetiu a pergunta do professor:
– Mas o que é que isso tem a ver connosco?
Helena Portas esboçou um sorriso.
– Nada, certamente. É apenas uma história curiosa. – Voltou a baixar os olhos para o livro. – Como curiosa é esta data: 1942.
– Porquê? – admirou-se o professor José Augusto. – Foi o ano em que Gulbenkian chegou a Portugal.
– É verdade. Em que alegadamente ficou doente e teve de permanecer cá mais tempo do que o previsto.
– Alegadamente? – estranhou Eduardo.
Helena Portas ignorou-o.
– Não é tanto a data em si que é curiosa mas o facto de estar neste livro. A primeira edição de Wise Blood ocorreu na década de cinquenta. – Rodou, ficando de frente para as costas de Valerya. – Diga-me uma coisa, por favor: em que ano nasceu?
(Este é o décimo capítulo do nosso 'cadáver esquisito', explicado aqui. A próxima mão a embalar o cadáver é a do José Gomes André.)