"Viver é desenhar sem borracha"
Millôr Fernandes foi talvez o primeiro escritor brasileiro com quem travei conhecimento, ainda criança, através da secção 'Pif Paf', do Diário Popular. Eu era ainda muito miúdo mas já tinha o gosto dos jornais: no cinzento Portugal pré-25 de Abril, as prosas de Millôr (nome que não tardei a fixar), as piadas de Millôr, os bonecos de Millôr tinham um colorido muito próprio. Sendo brasileiro, era um autor universal. E um cultor inigualável do nosso idioma, além de um genial produtor de frases que tinham um duplo condão: faziam-nos sorrir e faziam-nos pensar.
Os últimos textos que li dele foram na Veja, onde tinha há muito uma página com nome próprio. Sem nunca perder a irreverência, sem nunca perder a verve. A idade aguçou-lhe o engenho, a malícia, a arte do trocadilho inteligente que tantas vezes lhe permitiu fintar a feroz censura das décadas de 60 e 70.
Tenho anotadas nos meus cadernos várias frases dele. Eis algumas:
«Deus fez o mundo. O homem o faz imundo.»
«Nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na desonestidade.»
«Hay gobierno, soy contra. No hay gobierno, también soy.»
«Todo governo é um acto de depravação.»
«Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.»
«Fiquem tranquilos os que estão no poder - nenhum humorista atira para matar.»
«Jamais diga uma mentira que não possa provar.»
«O que vive repetindo a palavra indubitável é, indubitavelmente, um mentiroso.»
«Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que nas mulheres fica muito melhor.»
«O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde.»
«O homem é um animal inviável. Graças a Deus. Senão o mundo seria de uma monotonia insuportável.»
«Claro que não se pode evitar o nascimento nem a morte. Mas não dá para melhorar um pouco o intervalo?»
Millôr, o homem que a sorrir nos fazia pensar. O homem que nos ensinou que "viver é desenhar sem borracha". O homem que parecia eternamente jovem deixou-nos há dias, aos 88 anos. Despeço-me dele quase como de uma pessoa de família: há 40 anos que o lia - sempre com gosto, sempre com prazer, sempre com proveito. Procuro um obituário digno desse nome na imprensa portuguesa e quase nada encontro - a excepção, nesta busca não exaustiva, é um bom texto de Isabel Coutinho no Público. Quase tudo o resto é prosa seca e árida e estéril, misto de agência e wikipédia, corta-e-cola, repetindo os mesmos factos, os mesmos dados. Sem emoção, sem brilho, sem colorido, sem sombra de graça.
Millôr merecia mais. Merecia melhor do que estes parágrafos de amanuenses produzidos provavelmente por quem nunca o leu. Nem se sentiu mais pobre de espírito por causa disso.