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Delito de Opinião

Cadáver esquisito (5)

Bandeira, 19.03.12

1. UM LIVRO, 2. CA...... SARKIS G........N, 3. OLHOS4. ESCAVAR

5

IN VINO VERITAS

 

João Cosme dedicou algum do seu tempo à leitura de Wise Blood. A história do cágado não lhe saía da ideia. “Se o sonso do Eduardo tiver a razão que assiste aos simples e aquilo que busco estiver mais perto do que eu pensava, o que há a fazer é parar e ficar atento ao que se passa à minha volta”, decidiu. Fechou o livro sem se preocupar em marcar a página. “Wise blood” era, para um dos personagens de O'Connor, o conceito algo irreligioso de que algumas pessoas nascem já equipadas com um instinto orientador do rumo da sua própria vida, sem necessidade de guia ou conselho, espiritual ou outro. Pareceu a João Cosme que a definição lhe assentava como uma lapa assenta na rocha. Não terminaria o livro. Se já antes se tinha em boa conta, estava agora seguro de que trazia em si, como um vinho centenário, todas as respostas para todas as perguntas do mundo. O que lhe faltava era o saca-rolhas; e o saca-rolhas só podia ser, dizia-lho a glândula pineal (ou outra parte do cérebro mais obscura ainda) a Vivelinda. A partir desse momento, os olhos antes cegos de João Cosme estariam atentos a todos os movimentos da criada.

Vivelinda deitara-se no seu esconso quarto das águas-furtadas. Tinha o hábito de gozar, logo após a azáfama do almoço, uma sesta de uma hora. Era o momento em que toda a gente, à excepção da madrinha de João Cosme (que há anos julgava tricotar um qualquer peça de roupa quando mais não fazia que agitar desajeitadamente as agulhas) estava fora de casa. Sem a sesta, talvez Vivelinda não aguentasse a carga: a sua não era uma vida fácil. Os dedos finos e compridos de pianista, dantes habituados à delicadeza dos pincéis, estavam agora calejados e embrutecidos pelo serviço de todos os dias. E depois, sentia a falta da algazarra das crianças. Como pudera João Cosme, uma delícia de menino quando cego, transformar-se no arrogante empedernido que passara a ser depois do milagre no incêndio d’Os Freixos? Depois de nisto reflectir, fechou Vivelinda os olhos e sonhou sobre o destino redentor que João iria dar ao livro que ela lhe deixara, furtiva, sobre a cama.

Ao jantar, como era seu hábito, Eduardo e João Cosme deitavam olhares furtivos à janela de portadas sempre abertas que dava para os lados da torre. Ambos tinham uma secreta esperança de que, por uma vez, nada sucedesse. E no entanto, pelas nove e meia, uma luz amarelada cintilou através de uma fresta da velha ruína. Recordando o fugaz episódio do pequeno-almoço, o professor José Augusto perorava sobre a visita que recentemente fizera a uma exposição sobre a vida e obra de Calouste Gulbenkian na fundação a que o mecenas arménio dera o nome e  muito mais. João Cosme olhou para Eduardo. Este devolveu-lhe o olhar. Uma estranha resolução, invulgar nele, cobria-lhe a face. Parecia dizer: “Não. Hoje vais sozinho”.

(Este é o quinto capítulo do nosso 'cadáver esquisito', explicado aqui. A próxima mão a embalar o cadáver é da Cláudia Köver.)

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