O país que fica no país que passa
O país visto da janela de um comboio é feito de contrastes chocantes. A natureza, com frequência belíssima. E a paisagem com marca humana, tantas vezes desfigurada. Com os seus quintais esventrados, as suas marquises, os seus detritos. Continuamos a conviver sem peias com a sujidade. Continuamos a mandar abater árvores porque as raízes crescem, as folhas incomodam, as flores causam alergias.
Continua a faltar-nos o sentido estético da existência: basta-nos um muro sem cal, uma arrecadação decrépita, um vidro fosco, o capim por cortar. Acatamos de bom grado toda a poluição visual.
O curto trajecto ferroviário entre Santa Apolónia e a Gare do Oriente é um pesadelo. Marvila, Xabregas, Braço de Prata. Parece um cenário do terceiro mundo. Parece o Líbano mergulhado em guerra civil na década de 80. Como se o "progresso" nunca tivesse chegado a esta via de entrada em Lisboa. Algo que deveria envergonhar todos os lisboetas.
Felizmente há mais país. A súbita aparição do castelo de Almourol plantado no Tejo é de cortar a respiração. Mais adiante, Constância: puro deslumbramento. E todo o trajecto entre Abrantes e as Portas do Ródão, na Linha da Beira Baixa, nos convida à comunhão com a natureza. Largos quilómetros sem vestígio humano, apenas as fragas emoldurando o grande rio, espantosamente seco no final de um Inverno em que mal choveu.
Todos devíamos ao menos uma vez na vida fazer este trajecto de comboio à beira-Tejo, abandonando o circuito do alcatrão. Para nos lembrarmos que existe um país dentro do país. Um país sem lixo nem poluição visual.
Um país que nos serve de memória e de raiz. Um país que é nossa referência íntima, imutável. O país que permanece. O país que fica no país que passa.