Pode alguém não ser o que é?
A propósito da prisão de uma jovem portuguesa em Espanha, por tráfico de droga, leio várias notícias na imprensa portuguesa que a identificam como "ex-actriz". E ponho-me a pensar: o que será uma "ex-actriz"? Alguém que abandonou a profissão? Mas ser actriz, julgo eu, não é propriamente profissão - é vocação. Pode estar-se desempregado, sem actividade temporária nos palcos ou nos estúdios, e essa designação mantém-se como senha de identidade. A propósito, lembro-me de Shirley Temple. Ainda criança, na década de 30, foi uma das celebridades do cinema à escala planetária. Ao tornar-se adulta, perdeu a fotogenia e a graça inocente que a projectara para a capa de todas as revistas ilustradas. Estudou, constituiu família, envolveu-se em actividades políticas, tornou-se embaixadora de carreira com o apelido Black. Mas jamais deixou de ser a Shirley Temple do tempo dos nossos avós, a primeira e a mais inconfundível das inúmeras estrelas da 20th Century Fox. Nunca foi ex-actriz. Por mais que o destino a tivesse afastado dos plateaus cinematográficos.
Actriz uma vez, actriz para sempre. De algum modo como um médico, que não se limita a exercer uma profissão: há nele um carácter de missão irrevogável. O mesmo se dirá de um jornalista. Ou de um escritor. Haverá "ex-escritores" ou "ex-pintores"? Julgo que não. Um poeta, por exemplo, só é "ex" quando morre. E mesmo assim as suas estrofes podem sobreviver-lhe, enternecendo gerações que nunca conheceram fisicamente quem as concebeu.
«Nunca penso na minha carreira. É uma palavra que não uso quando reflicto sobe o meu trabalho», declarou justamente, em recente entrevista ao El Mundo, Michelle Williams, galardoada com o Globo de Ouro para melhor actriz de comédia pelo seu desempenho no filme Uma Semana com Marilyn. Um actor tem como missão - muito mais do que profissão - seduzir os outros pela palavra, pelo gesto, pela entoação. Às vezes pelo silêncio, que também constitui uma poderosa arma de sedução. Podemos demitir-nos de um cargo, jamais conseguiremos demitir-nos da nossa vocação. É por isso que jamais me passaria pela cabeça chamar "ex-actriz" a alguém. Mesmo a uma jovem condenada a prisão em Espanha por tráfico de droga.