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Numa mecânica passagem pelos canais de televisão à uma e meia da manhã, rejeito liminarmente todos os filmes e séries que me saem ao caminho e continuo, procurando nem eu sei bem o quê. Procurando nada, no fundo, apenas tentando fintar a noite com a paciência e a resignação dos insones crónicos. Detenho-me, hipnotizada, numa reportagem sobre a fome no reino dos eleitos: a América pujante e esplendorosa do presidente Obama. Nas estatísticas caem as máscaras e surgem números tão assustadores como surpreendentes. Dolorosamente, desfilam perante os meus olhos, como fracturas expostas, abrigos para indigentes, lixeiras habitadas, tendas imundas que são morada de família. E finalmente o golpe de misericórdia, desferido pela indescritível expressão de desistência nos olhos de uma menina de cinco ou seis anos. Entrevistada num abrigo comunitário para crianças, responde à pergunta "e tu, porque estás aqui?" com a lentidão dos que já nada esperam: "a minha mãe come ratos". A jornalista estaca, sem ar nos pulmões. Eu morro por dentro, sabendo que nunca mais esquecerei a cena. Nunca mais. Nem o olhar, nem a frase, nem o fio de voz. Nesta hora sombria em que tudo parece mais negro, eis o que a luz de nenhuma manhã conseguirá apagar. Augusto Gil salta de um livro da minha infância para martelar-me o cérebro, impiedoso. Mas as crianças, Senhor?
Ah, não me venham falar de direitos adquiridos que eu ainda mato alguém.
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