Cadáver Esquisito (1)
1
UM LIVRO
Foi quando acordou que Cosme sentiu o livro pousado no lado onde nunca ninguém dormia. Os lençóis, de uma cor de terra enxuta de chuva, camuflavam a capa. Mas a presença de um objecto naquele espaço foi quanto bastou para que Cosme desse por ele. Agarrou-o com as duas mãos para ter a certeza do que encontrara. Ali estava, num quarto sem livros, numa casa quase sem livros e na cama de um ex-analfabeto, aquilo que viria a descobrir-se ser a edição inglesa do 'Wise Blood' da Flannery O'Connor.
Que o livro ali fora deixado a meio da noite foi conclusão imediata. Não que a coisa tivesse lógica mas todas as outras explicações, e Cosme calcou-as uma a uma com mãos de artesão, pareciam ainda mais absurdas. Não só aquele livro nunca tinha sido visto naquela casa, e muito menos naquela cama na noite anterior, como ninguém ali tinha estado, que ele tivesse percebido, que não fosse a Vivelinda, analfabeta de verdade.
O livro, que Cosme nem começou por tentar ler, tinha pois aparecido durante a noite. E tinha ficado ali, umas horas ou uns momentos, à espera de ser encontrado. O céu e o inferno em paz, pensou Cosme, quando imaginou o sono partilhado com um livro que não conhecia. E foi assim que tudo começou. Ou, se quisermos ver as coisas pelo outro lado, que o há, foi assim que tudo terminou.
(Este é o início do nosso 'cadáver esquisito', explicado aqui. A próxima mão a embalar o cadáver é a da Ana Cláudia Vicente.)