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Delito de Opinião

Nenhuma nudez será castigada

Ivone Mendes da Silva, 12.02.12

 

O cinema tem tido para com o corpo das mulheres uma generosidade que muito tem negado ao corpo dos homens. De rostos não tenho queixas, eu que prefiro os pensamentos profundos suscitados pelo olhar de Gabriel Byrne ou de Dennis Quaid à ligeireza de um café Nespresso.

O cinema esqueceu, na maior parte das vezes, o esplendor renascentista de um nu frontal. Os actores encaracolam-se sob o olhar da câmara, como se portadores fossem de uma adâmica timidez que, de súbito, lhes mostrasse que estavam nus. Numa das cenas de La reine Margot (Patrice Chéreau, 1994), Vincent Perez esconde a flexibilidade pós-adolescente nuns requebros evitáveis de fuga à câmara. É certo que essa cena foi filmada em Mafra e as salas desertas de Mafra não serão, com certeza, o melhor sítio para um homem se despir. Mas até na ascese aquecida de um hotel sueco, Daniel Craig, que não tem um centímetro de pele em que se possa pôr defeito, parece negar-se ao olhar de Lisbeth Salander.

Chegaram-me estes pensamentos nus ontem à noite, quando vi que a RTP2 passava The Accidental Tourist (Lawrence Kasdam, 1988). William Hurt não tem neste filme a magnificência física que o mesmo realizador lhe filmou, em 81, em Body Heat. Nem Kathleen Turner tem a força motriz da femme fatale porque, obviamente, a história a ser contada é bem outra.

Body Heat é um filme sobre o corpo, ou sobre como um corpo pode empurrar outro para a passadeira púrpura da hybris, local onde, uma vez posto o pé (para ser metafórica), não há redenção possível.

Desde que o vi em Body Heat, William Hurt passou a ser o corpo do cinema e pela humidade nos ombros dele passei a aferir todos os outros. A nudez de Ned Racine é coisa para acender profundas questões teológicas e pôr qualquer ateia a murmurar, sem saber como, Credo in unum Deum, patrem omnipotentem

Resta-me agora ver, em 3 fois 20 ans (Julie Gravas, 2011), se as costas molhadas de William Hurt ainda retêm algumas gotas de água sombria. E, daí, talvez seja o que menos importa: o corpo de um homem, e o que dele decorre, é, como se sabe, cosa mentale.

2 comentários

  • Atavismos, só pode ser :)
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