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Delito de Opinião

O número dois que se vê

José António Abreu, 02.02.12

Seria sempre difícil. Um número dois é invariavelmente olhado com desconfiança. O que terá feito para chegar tão perto do poder? Qual o seu grau de lealdade? Manterá segundas intenções? Andará a extravasar as suas competências? Ainda por cima, já não estávamos habituados. Antes de Miguel Relvas, há pelo menos uma década que não dávamos pela existência de um número dois político num governo.

 

Claro que, em termos de relevância global, o número dois dos últimos governos tem sido o Ministro das Finanças. Mas não é função do Ministro das Finanças preocupar-se com justificações políticas das medidas que impõe ou ajuda a impor. Para isso, há ministros políticos. Mas será que estamos habituados a dar por eles? Quem – respondam depressa – era o número dois político nos tempos de Durão Barroso? Não, Paulo Portas estava no governo mas nunca foi número dois (nem podia sê-lo: pertence a outro partido e era olhado com grande desconfiança por muita gente no interior do PSD, tendo que gerir a exposição mediática com imenso cuidado). Então? Pois, não é resposta que surja de imediato – talvez Marques Mendes mas, na verdade, ninguém parecia destacar-se no apoio ao Primeiro-Ministro (sim, eu sei: se era Marques Mendes, não surpreende que não se destacasse – mas vocês percebem o que quero dizer). E depois vieram os governos Sócrates. Em ambos, o lugar de número dois político era, evidentemente, ocupado por Pedro Silva Pereira. Mas Pedro Silva Pereira possuía uma característica que Relvas não possui nem poderá obter (há a cirurgia mas vamos partir do princípio de que ele não está disposto a tanto): era um clone do Primeiro-Ministro; uma extensão de José Sócrates; uma emanação de José Sócrates. Façam um exercício: tentem pensar em Pedro Silva Pereira sem pensar em Sócrates. Tentem vê-lo como uma pessoa independente, com vida própria, um casamento (ou uma união de facto, que estamos a falar de um socialista moderno), filhos; tentem imaginá-lo sentado no sofá, em pijama e chinelos, assistindo a uma partida de futebol na televisão. Conseguem não ver Sócrates algures? Admitam: é Sócrates que vêem e não Silva Pereira; ou então as imagens sobrepõem-se; ou, no mínimo, Sócrates encontra-se no outro sofá ou de pé junto à porta ou, no mínimo dos mínimos, numa fotografia emoldurada por cima da lareira. Tenho razão, não tenho? Excelente. Só mais um teste: pensem em Pedro Silva Pereira a falar. Conseguem ouvir a voz dele e apenas a voz dele na vossa cabeça? Bem me parecia. A voz política dos governos Sócrates foi sempre Sócrates (mesmo à posteriori, que pensamento aterrador).

 

Miguel Relvas surge, assim, particularmente estranho – e inquietante. Trata-se de um número dois que intervém com frequência, que aqui e ali parece sobrepor-se a Passos Coelho, que é maçon (pormenor irrelevante não se desse o caso da Maçonaria parecer ter trocado os elevados ideais do Iluminismo pelos prosaicos ideais da troca de favores), que tem a seu cargo reformas delicadas (por exemplo: redefinição do mapa do poder local e privatização da RTP) e que, tutelando a área da comunicação social, pode facilmente cair na tentação de procurar manobrar a informação. Ora se a questão das reformas já suscita alguma preocupação, pelo nevoeiro que parece envolvê-las (em especial a da privatização da RTP), por estes dias torna-se inevitável abordar o caso Pedro Rosa Mendes. Das duas, uma: ou Relvas mandou afastar Rosa Mendes ou a administração da RTP (e RDP) decidiu antecipar qualquer desagrado superior e tratou do assunto com o excesso de zelo típico dos lambe-botas (estúpidos, ainda por cima) que tendem a ocupar posições do género neste país. No primeiro caso, nem há espaço para hesitações: Relvas devia abandonar o governo. No segundo, devia demarcar-se – e demitir a administração da RTP. Das piores coisas que o governo pode fazer numa época em que o espírito de boa vontade não abunda é começar a transmitir a ideia de que aprecia o silenciamento de vozes discordantes. E quem achou que o caso Fernando Charrua/Margarida Moreira (ou lá como se chamava a triste senhora) era um péssimo indício dos tempos que se viviam sob a batuta do quase engenheiro e futuro filósofo, não pode agora contemporizar. De resto, já era tempo de entendermos que tentar silenciar comentários negativos gera quase sempre mais ruído do que permiti-los (mas trata-se de um tique ditatorial que nos vem de longe). Sendo um homem inteligente, Miguel Relvas deve perceber que constituirá sempre um alvo: it comes with the territory de ser um número dois que se vê, ainda por cima em tempos de crise profunda. Acontecimentos deste género só farão com que tenha de pagar por isso mais depressa. Ou então pagará Passos Coelho.

2 comentários

  • Veremos, SC. Apesar do discurso continuar correcto, há de facto indícios preocupantes nesse sentido.
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