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Delito de Opinião

Grandes contos (13): Greene

Pedro Correia, 28.01.12

 

Para Graham Greene (1904-91), a vida humana dividia-se em duas etapas essenciais: a "idade da confiança" e a "idade do cinismo". O grande escritor britânico havia entrado já nesta última fase quando decidiu entregar-se à arte do conto, que sempre desdenhara até então, praticando-a com sofisticada ironia, como exímio herdeiro de um Oscar Wilde. Daí nasceu uma das suas mais singulares obras de ficção: May we borrow your husband? (1967), que tem como subtítulo "and other comedies of the sexual life". Para trás ficara a etapa dos excelentes romances em que o Greene da "idade da confiança" nos legou títulos inesquecíveis como O Poder e a Glória, O Fim da Aventura e O Nó do Problema.

Ancorado em Antibes, no sul de França, este Greene que se intitula cínico deixou aparentemente de se envolver e de se comover com as grandes causas que fazem girar o mundo, fixando-se apenas nas minudências de um quotidiano banal. Com sarcasmo autodepreciativo, apresenta-nos o seu alter ego, William Harris, como "um homem já de certa idade que só deseja bom vinho, bom queijo e pouco trabalho".

 

Harris é a figura central do longo conto em oito capítulos que dá título a Empresta-nos o Seu Marido? (edição portuguesa da Bertrand, com tradução de Bertha Mendes). Escritor notoriamente entediado com a vida após dois casamentos fracassados, tenta redigir num hotel de Antibes a biografia do Conde de Rochester, poeta do século XVII. É Outono, a vila balnear encontra-se quase deserta, mas nem assim Harris mergulha com facilidade no seu manuscrito: o século XX teima em distraí-lo da tarefa. Numa saborosa cumplicidade com o leitor, vai-nos guiando numa comédia de enganos protagonizada por quatro inesperados hóspedes do hotel: três homens e uma mulher em lances voluntários ou involuntários de sedução. Algumas aparências iludem, outras nem tanto. No desfecho, como era de esperar, ficarão múltiplas cicatrizes -- quatro é número que equivale a multidão nos labirintos do amor. Mas talvez quem saia mais ferido seja afinal a quinta personagem: precisamente o narrador supostamente distanciado que acaba por envolver-se mais do que devia. O espectador passa por sua vez a ser espiado -- por cada um de nós.

A progressiva manipulação do leitor, que acaba enredado num jogo de caixas chinesas por esse hábil prestidigitador de emoções que é sempre um grande escritor, constitui o maior fascínio deste conto. Greene garante ter-se tornado um cínico, mas não consegue despojar-se do romantismo nesta trama de obsessão e desejo. Também aqui as aparências iludem.

 

"No termo do que se chama 'vida sexual' o único amor que dura é o que tudo aceitou, todos os desapontamentos, até o triste facto de no fim não existir desejo tão profundo como o simples desejo de não nos sentirmos sós", reflecte Harris. Que é Greene. Melancólico leitor dos poemas anacrónicos de Rochester. Um deles significativamente intitulado "O Prazer Imperfeito", que poderia servir também de título deste conto se o autor tivesse querido dar mais ênfase à tragédia que se insinua nas entrelinhas do que à farsa que voga na superfície.

Não quis -- e fez bem. Nada mais adequado para melhor compor esta teia de ilusões.

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