Terapia de choque
Maurizio Cattelan, “Hanging children”, 2004
(instalação na Piazza XXIV Maggio de Milão, patrocionada pela Fondazione Nicola Trussardi)
Monica Ali não é a melhor escritora do mundo. Se o seu primeiro romance, “Brick Lane”, teve um êxito estrondoso e levantou uma acesa polémica entre a comunidade bangladeshi no Reino Unido, à qual ela pertence e cujo quotidiano desenraizado é minuciosa e conflituosamente descrito no livro, já a segunda obra publicada por Ali intrigou os literatos e o público. Chama-se “Alentejo Blue” e decorre nessa estranha e despovoada charneca, perdida no extremo sudoeste da Europa. Contar histórias acerca da gente exótica que vive no meio de nós e nos escapa à atenção é muito atraente, misterioso até; agora discorrer sobre um lugar que a ninguém diz nada nem nunca ouviu falar, que melhor receita poderia haver para o insucesso?
Todavia em “Alentejo Blue” Monica Ali demonstra ter bastante apurada uma das qualidades primordiais de um escritor: o poder de observação. Ou seja, a capacidade de recolher de uma realidade aquilo que estando à vista de todos, a todos permanece obscuro. Por exemplo: “Alentejo Blues” começa com um homem enforcado, um velho que se suicida e é descido da árvore por outro velho, seu amigo de infância que durante primeiro capítulo recorda tudo por que passaram juntos.
A um leitor britânico isto é apenas uma construção dramática e muito provavelmente também um leitor urbano português assim o entenderá. Nos últimos 40 anos o Alentejo rural esvaziou, converteu-se num baldio dada a inviabilidade da agricultura de sequeiro e ganhou entre os citadinos nacionais, agora a maior parte da população, a ilusória imagem de um paraíso de tranquilidade e de ecologia. Tal olhar beatífico esquece que era habitual os velhos suicidarem-se, num acto de puro altruísmo, para não pesarem nas famílias. O trabalho era sazonal, nem sempre havia pão para pôr na mesa e o pouco que havia era inconveniente desperdiça-lo em quem já não tinha força nos braços para render mais uns imprescindíveis tostões. Com um baraço e um sólido ramo no alto de uma azinheira, equilibrava-se a economia doméstica. Embora contrário aos preceitos vigentes, tão comum e tido como decente era o suicídio, tão natural digamos, que a igreja declarou o Alentejo como terra de missão.
Esta tradição foi quebrada por Marcello Caetano quando, talvez no único gesto memorável do seu ministério, estendeu a segurança social ao povo rural. A decisão teve um efeito dramático na taxa de suicídios no Alentejo cuja curva mergulhou a pique como os papéis do PSI20. Depois foram estes anos que lá em baixo pareceram de leite e mel. Não que os jovens quisessem continuar naquela vida, que bem perceberam, pelo que contavam os velhos, não ter presente quanto mais futuro, mas agora sempre um ancião podia gozar o solinho das manhãs sem ter que, literalmente, deitar contas à vida – do mal o menos.
Parece, no entanto, ter havido no outro dia uma senhora das situações a falar do Sistema com maiúscula e a dizer que ele não aguenta se não voltarmos aos dias anteriores a Marcello Caetano, aos tempos do quem paga pode, em vez do vigente quem pode paga. Ela lá sabe as contas que faz.