Esperança
Os filmes da chamada idade de ouro do cinema português sempre me fascinaram. Com eles tive acesso ao Portugal pobrezinho, saloio e pacato que só conhecia das histórias que os meus pais e avós me contavam. O país anacrónico dos namoros de janela, tão diferente das referências que o cinema de Hollywood me dava, em criança, sobre o que era a vida nos anos 30 e 40, revelou-se-me nas cenas românticas de O Pátio das Cantigas. A pobreza endémica do Portugalito das cerzideiras e apanhadeiras de meias colou-se desde cedo no meu imaginário às rábulas inesquecíveis de António Silva e Vasco Santana, sempre a fazer de pelintras cheios de expediente, em filmes como A Canção de Lisboa, O Costa do Castelo, A Menina da Rádio e O Leão da Estrela.
Já nem sei quantas vezes revi cada um desses filmes, mas quando os apanho a passar na televisão muitas vezes deixo-me levar embalada pelas falas que tão bem conheço. Falam-me da tal época intangível e eu fico ali, hipnotizada, a absorver a hermenêutica. "Chapéus há muitos, seu palerma", a chico-espertice. "Ai chega, chega a minha agulha", as trapaças. "A casa dos pobres tem mais alegria", o elogio da pobreza.
A cada regresso àquelas imagens percebo melhor qual a matriz dos meus familiares mais idosos, a sua relação com o dinheiro, a relutância que sempre tiveram em gastá-lo. No país onde se palmilhavam meias e viravam casacos não se desperdiçava nada. As mobílias, os tapetes e os casamentos eram para a vida. Quem não era pobre era "remediado" e quem era remediado não gastava, poupava.
A cena em que o motorista Daniel (Curado Ribeiro em O Costa do Castelo) propõe à família adoptiva da Luisinha (Milú) levar para a ceia um queijo e uma aguardente, suscitando o espanto dos circunstantes pela excentricidade de tão generosa oferta sempre me impressionou. Tão pequenos que nós éramos e tão acomodados nos revelávamos na nossa pequenez.
Assimilada até aos ossos, nesses tempos a imobilidade social cortava cerce a ambição dos mais desfavorecidos. Ou se emigrava, ou se sobrevivia. Mudar de vida não era fácil. Restava aquela alegre resignação do Simplício Costa (António Silva em Costa do Castelo), do Vasco Leitão (Vasco Santana em Canção de Lisboa) e do Rufino (Ribeirinho em O Pátio das Cantigas) ou então o triste fado. Dois estados de alma, acalentados pelo antigo regime, que reflectiam a mesma ausência de esperança.
Com a crise económica europeia há quem vaticine um regresso ao passado, mas jamais qualquer recuo nos levará àquele conformismo: a ambição que entretanto aprendemos a ter, já ninguém nos tira. E a ambição embora possa, quando frustrada, gerar revolta e violência é uma forma de esperança.