Da estabilidade
O Pedro Correia realça as diferenças entre Portugal e Espanha no que respeita ao número de governos e primeiros-ministros que cada país teve desde 1977, ano da restauração da democracia em Espanha, e considera que a nossa instabilidade (12 primeiros-ministros contra 6, por exemplo) nos prejudicou. Em princípio, concordo com ele. Parece-me evidente que mudanças frequentes de governo levam, entre outras coisas, a alterações sucessivas de prioridades, a adiamento de reformas, a «dança» de cadeiras nos mais diversos níveis do sector público, à gestão contínua de ciclos eleitorais – tudo elementos que prejudicam o crescimento sustentado da economia. O meu problema com esta tese (com a qual, repito, em princípio concordo) está na realidade portuguesa. Vejamos.
Em Portugal, tivemos um período de aproximadamente dez anos (grosso modo, 1975-1985) em que a mudança de governos e primeiros-ministros foi absurdamente elevada, de tal modo que nenhum governo chegou aos três anos de duração. Porém, desde 1985 a situação alterou-se significativamente, tendo apenas seis pessoas ocupado o lugar de primeiro-ministro (Aníbal Cavaco Silva, António Guterres, José Manuel Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, José Sócrates, Pedro Passos Coelho), o que dá uma média de três anos e meio por primeiro-ministro. Se retirarmos o episódio Santana Lopes, a média sobe para cerca de 4 anos. E se retirarmos Passos Coelho, chegado ao poder há seis meses e em relação ao qual não é possível conhecer o tempo de permanência no cargo, a média aproxima-se dos cinco anos (4,75 se fizermos a conta a dezanove anos). Ainda pouco? Talvez, mas de forma nenhuma um resultado escandalosamente baixo e que, na minha opinião, torna difícil poder apontar-se a instabilidade política como factor crucial no percurso do país em direcção ao abismo.
E se a matemática pode deixar dúvidas constate-se como, neste quarto de século, não foi por falta de poder formal para implementar reformas que estas ficaram por fazer. Bem ou mal, Cavaco ainda executou algumas (na realidade, bem e mal, dependendo das que considerarmos) mas Guterres (que, não tendo maioria, sempre viu os orçamentos aprovados) nunca teve coragem para avançar com elas e fugiu alertando para o pântano, Durão sofreu ataques de todos os lados assim que começou a falar delas e fugiu para o cargo dourado de Bruxelas e Sócrates (que gozou de uns inusitados dois anos de estado de graça), após algumas promessas iniciais, escolheu o caminho da demagogia e da negação da realidade. Para nenhum destes primeiros-ministros a questão da estabilidade foi crucial. Três tinham maiorias parlamentares, o quarto tinha condições para arriscar muito mais (e caiu por decisão própria, relembre-se, passam amanhã dez anos, nos quais fizemos questão de ignorar raivosamente todos os avisos).
Mais: a realidade portuguesa também já mostrou que os governos ou fazem as reformas logo no início dos mandatos ou já não as fazem. Cavaco reformou pouco na segunda maioria absoluta. Guterres nunca reformou. Durão não reformou de imediato, foi trucidado por lobbies e opinion makers e também já não reformou. Sócrates esboçou algumas reformas nos primeiros tempos e depois avançou para o delírio. Isto sucede porque há interesses instalados (partidários e corporativos) mas também porque os portugueses detestam a mudança, em especial quando tem riscos ou consequências pouco simpáticas a curto prazo. Dar tempo a que a resistência à mudança se organize é um erro que terá menos a ver com a falta de estabilidade dos governos do que com a incapacidade destes para governar bem (para governar efectivamente, no fundo). Desde logo, é confrangedora a falta de preparação que muitos revelam ao tomar posse. (Como é possível que todos se mostrem surpreendidos com a situação encontrada? Por que continuam os partidos da oposição a recusar-se a organizar gabinetes-sombra? Por que parecem os partidos da oposição ter dificuldade em obter dados sobre mil e uma situações? O que está errado no sistema de estatísticas oficiais para que nem eles nem o governo possuam elementos concretos sobre outras tantas?) Mas sejam quais forem os motivos que levam os governos a adiar e depois a esquecer as reformas, a verdade é que estas não ocorrem após os primeiros tempos. E assim, no limite e de forma não totalmente irónica, pode até dizer-se que a estabilidade dos governos acaba por se revelar negativa – quanto mais duram, mais aumenta a probabilidade de nada ser feito e mais se adia nova hipótese de alguma coisa ser feita.
(Nota acessória: é por isso fundamental que o actual, que continua com um discurso globalmente correcto, não adie durante mais tempo as reformas que se comprometeu a fazer.)
Parece-me também que mais importante para o percurso do país do que governos (mais) duradouros teria sido (e ainda é) a estabilidade nas posições dos partidos e a capacidade destes em realizar entendimentos. Os partidos do arco governativo (os outros contam pouco, uma vez que se auto-excluem de quaisquer soluções moderadas) não podem (enfim, não deviam) inverter as suas posições sobre um mesmo assunto consoante estão no governo ou na oposição. Isso permitiria obter acordos sobre algumas das áreas a reformar, levando a que nem tudo fosse posto em causa após uma mudança governativa. A demagogia e os interesses têm-no impedido, não a instabilidade política.
Pelo que não me parece que, seja qual for o ponto a partir do qual analisemos a questão, a falta de estabilidade governativa tenha a) sido assim tão real (desde 1985, note-se) e b) desempenhado um papel assim tão significativo no descalabro português. Pelo contrário: sinto até dificuldade em afastar a ideia de que a teimosia decorrente de governos com demasiado poder durante demasiado tempo foi muito mais relevante. A frase de Lord Acton é conhecida: o poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente. Num país com gente pouco interessada nas opiniões alheias, sem instituições verdadeiramente capazes de agir como contrapeso e em que tudo depende do governo, o poder corrompe depressa e a tendência para a teimosia e para o abuso é enorme. Sucedeu assim nos anos de Cavaco, sucedeu assim nos anos de Guterres (talvez um pouco menos, por uma questão de estilo pessoal e porque não existia nem maioria absoluta nem, até à última fase, crise económica), sucedeu assim (com elevação a um altíssimo expoente) nos anos de Sócrates. Ou seja: as putativas vantagens da estabilidade foram parcial ou totalmente aniquiladas pelo facto de vários governos se terem aproveitado dela para ignorar avisos e implementar políticas suicidárias.
E pronto, já chega. É mais ou menos por isto que, se em abstracto concordo com o Pedro, em concreto talvez não.
Imagem retirada daqui.