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Delito de Opinião

O que ando a ler (13)

Teresa Ribeiro, 12.12.11

 

O que ando a ler? Bem, para não fugir à verdade tenho de responder que ando agora a ler um misógino nojento, que chegou ao cúmulo de esfaquear em público uma das suas seis mulheres. Pior que ele só mesmo o Barba Azul. Machista assumido, insuportável fanfarrão, Norman Mailer, o escritor que tenho agora à cabeceira, podia ter um péssimo carácter, mas escrevia como poucos. Dele já tinha lido O Sonho Americano (1965) e Os Duros Não Dançam (1984). Gostei dos dois romances. Da crueza do estilo, da atenção aos detalhes quando se trata de descrever a natureza humana, em que ele obviamente não acredita. Já lhe chamaram, num tom tão ácido e cínico que só poderia ser inspirado no seu, "metafísico das entranhas". Ignorem o "metafísico", que foi acrescentado às "entranhas" por blague, quanto ao resto não há exagero. Mailer vai ao fundo, mas como faz o culto exacerbado do macho man style e gosta de se identificar com os estereotipos, esforça-se também por ser bruto a escrever. Usa vocábulos duros, calão, vernáculo. Descreve as suas personagens masculinas com termos apropriados para um "gajo", tanto para o que descreve como para o que é descrito (queixo forte, mãos firmes, mandíbula longa, expressão de desprezo) e de sexo fala assumindo o mais despudorado sexismo. Mais um pouco e esse estilo tornar-se-ia caricatural. Mas estamos a falar de uma bomba que tem tanto de adrenalina como de talento, por isso o instinto preservou-o de derivas de mau gosto.

Ler Mailer é uma experiência forte. Envolve-me e ao mesmo tempo alimenta o meu voyeurismo feminino, ajudando-me a ver o mundo pelas lentes embaciadas da testosterona. Se gostei daqueles dois romances seria imperioso mais tarde ou mais cedo ler a sua masterpiece, Os Nus e os Mortos. Chegaram a compará-lo à Guerra e Paz, quando em 1948 foi editado nos Estados Unidos. Foi a estreia literária de Mailer, tinha então apenas 25 anos. Não admira que se tenha tornado no ser insuportável que o mundo conheceu. O sucesso precoce e instantâneo, como se sabe, faz mal à saúde.

Ainda nem cheguei a meio deste romance de 700 páginas mas já estou em condições de dizer que é, sem dúvida, um dos mais bem escritos e apaixonantes que já ali. Baseado na experiência de guerra do autor, que se alistou durante a Segunda Guerra Mundial e serviu nas Filipinas e no Japão, descreve as provações por que passa um grupo de soldados norte-americanos durante a invasão de uma ilha do Pacífico Sul ocupada pelos japoneses.

Narrada num estilo muito cinematográfico, esta obra, que não por acaso veio a ser adaptada para o cinema dez anos depois, descreve o horror da guerra à escala humana: "Red estava a pensar mais uma vez nos cadáveres da clareira. Sentia uma estranha fascinação ao lembrar-se da sua aparência. Uma vaga de medo penetrou no torvelinho do seu cérebro e olhou por cima do ombro, para trás de si"; "As vozes e os comandos ecoavam no vazio, perdiam-se num coro de obscenidades e roucos murmúrios, os sons esforçados e suados de homens que labutam. Ao fim duma hora nada mais existia para eles senão o pequeno canhão que tinham de puxar ao longo do trilho".

Em Os Nus e os Mortos todos os personagens têm uma biografia através da qual percebemos de que mescla de americanos são feitos os EUA, mas sendo todos homens, apesar das suas diferenças partilham com raras excepções a doença do autor, o homem que dizia que "uma mulher só se conhece verdadeiramente em tribunal": "Há só dois ingredientes para fazer uma boa festa: bebida suficiente e algumas fêmeas condescendentes" (Conn); "Eu não vou lá muito com mulheres. O que elas querem é apanhar-te, tenho visto exemplos que cheguem" (Red), "Não há uma única mulher que mereça confiança" (Brown) "Estou bem contente de não ter de me preocupar acerca de uma dessas cadelas me fazer cornudo" (Polack), "A verdade é, Robert, que a minha mulher é uma cadela" (Cummings). And so on...

Enfim, é por estas e por outras que se diz que todo o romance é autobiográfico.

 

Norman Mailer, Os Nus e os Mortos. Tradução de António Neves-Pedro. Portugália Editora (1957). 705 páginas.

 

E tu, Adolfo, o que andas a ler?

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