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Delito de Opinião

Ando a (re)ler a Criação do Mundo, de Miguel Torga (12)

Rui Rocha, 07.12.11

António José Faria de Barros foi o meu primeiro chefe. Transmontano, sisudo, teimoso, frio, áspero. Ou… nada disso. Antes de mais, um ser humano marcado pela vida. A mulher morreu prematuramente. Os dois filhos, deficientes profundos, sobreviveram um par de anos à mãe. Ao longo dos cinco anos em que trabalhámos juntos, os seus olhos só se iluminavam quando, depois de um dia de trabalho duro, contava algumas histórias de caça. Foi assim, pelos relatos de interposta pessoa, que conheci Adolfo Rocha. Eram amigos de longa data e caçavam juntos. As peripécias eram saborosas e bem contadas. Por vezes, imaginava-me com eles a comer achigãs na Foz do Sabor. Ou a caminhar ao seu lado, com os pés enterrados nas lamas transmontanas de Novembro. Um dia, disse-me: sabe, a minha mulher detestava o Torga… Mantive-me em silêncio, dando-lhe tempo para esconder o rosto atrás do monitor, enquanto uma lágrima de saudade lhe desfigurava a máscara gelada com que sempre se apresentava ao mundo. Pelo visto, em determinada altura, Torga teria tido um comentário mais frio sobre os filhos deficientes do casal: não podem viver só para eles. Nada de ofensivo ou brutal. Algo até muito natural para os ouvidos de qualquer outro interlocutor. Um punhal para o coração daquela mãe. E o Senhor Dr. como reagiu, perguntei-lhe. Sabe, eu li a Criação do Mundo, pisei com ele as pedras dos caminhos de São Martinho de Anta, estive com ele no sítio onde ele tratava do estrume enquanto os outros miúdos brincavam… por isso, percebo. Da obra de Torga, até então, tinha apenas suportado Os Bichos no ensino secundário. Por obrigação e com muito pouco entusiasmo e menos proveito. O tempo foi passando, mas aquela frase ficou: eu li a Criação do Mundo. A curiosidade foi crescendo e acabei por comprar o livro. Comecei a ler sem grande esperança ou entusiasmo. A memória do Corvo Vicente ainda estava demasiado presente… Depois, o assombro foi crescendo. Em termos estruturais, o livro divide-se em 6 partes, correspondendo cada uma delas a uma fase da vida de Torga. As duas primeiras (a infância em Trás-os-Montes e a adolescência e parte da juventude no Brasil) são relatadas em páginas que me marcaram como poucos livros o fizeram. É claro que, mais para a frente, perdi a magia. Digo que a perdi eu e não o livro porque é provável que seja assim. Se bem me lembro, desliguei-me do texto a partir do momento em que Torga descreve uma viagem em automóvel, por paragens de Espanha, e cai no auto-elogio. Agora, estou a relê-lo. É uma forma de recordar António José Faria de Barros e de agradecer tantos ensinamentos que não soube retribuir-lhe, sequer em palavras, em vida. De dizer-lhe que também eu percebo tudo, todos e nada ou nenhum deles. E, sobretudo, de tentar refazer a leitura a partir do episódio de Espanha. Se tiver a sorte de reaver a magia, direi que a Criação do Mundo é, no seu todo, um livro inesquecível.

 

Como deve ser, o melhor fica para o fim: em breve, a Teresa Ribeiro vai dar continuidade à série.

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