A vergonhosa deslembrança
Há 31 anos estava eu numa certa sede de campanha, a cobrir a hora de jantar. Este era o frete reservado aos novatos líricos e não numerários.
Quando a bomba rebentou, não acreditei, evidentemente. Precisei de atravessar a rua para entrar num café apinhado de gente desconhecida mas igualmente incrédula, de olhos cravados na televisão. E ouvir em directo a absurda notícia. No ar, por todo o lado, a mesma sentença terrível: «Mataram-no». «Mataram-nos», diziam os cautelosos em murmúrios e os temerários em exaltações. Numa mesa falava-se de Sidónio Pais: as memórias de um déjà vu nacional que nada me dizia.
Hoje é quase impossível transmitir a brutal violência do choque que sentimos.
Tal como é intraduzível o desânimo, o sentido de injustiça, a revolta, o desalento, o descrédito perante o país que perpetra um crime horrendo como este, exactamente na hora H, ou seja, a escassos dias de conquistar o direito a uma democracia com norte, organizada e construtiva.
À noite, na tertúlia alargada do costume, desgastei-me com outros numa interminável discussão sobre o acerto da tese de atentado, contra os restantes paternalistas que troçavam dos nossos delírios de razão, embotada pelo sentimentalismo. Era um aparente mas hipócrita e falsíssimo bom senso, o deles. Tiravam-me do sério.
Camarate foi a minha primeira grande, brutal desilusão.
Quanto ao resto, sempre fiquei na minha, durante estas 3 décadas.
E agora sabe-se que a verdade estava desde o princípio debaixo dos nossos olhos.
Certo, certo, é que desde então nunca mais confiei neste país manhoso, de honra manifestamente duvidosa, onde a impunidade, orquestrada pelas vozes do falso bom senso, continua a vingar. Convenientemente. Comodamente. Por entre esta espécie de cobardia de um povo acostumado.