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Delito de Opinião

A dor da gente não sai no jornal

Pedro Correia, 29.11.11

 

Não sei se convosco acontece o mesmo. A mim sucede-me com frequência: leio uma notícia num jornal que me sabe a pouco. Apetece-me conhecer mais pormenores, desvendar o lado oculto do relato noticioso, frio por excelência, sucinto por óbvia limitação de espaço.

Aconteceu-me nestes dias por duas vezes. A primeira ocorreu ao saber do falecimento da única neta do mítico milionário William Randolph Hearst, que Orson Welles retratou na sua obra-prima O Mundo a Seus Pés (1941), chamando-lhe Charles Foster Kane. A senhora vivia sozinha numa quinta situada nas imediações de Sevilha e regressara pouco dias antes de Portugal, onde fora submetida a uma operação plástica.

A notícia que li era enigmática: calava muito mais do que explicava. Como é que a neta de um magnata americano vai parar a um lugarejo da Andaluzia e lá se radica durante anos? Por que motivo a senhora, dona de tantas posses, vivia tão solitária? Que recordações guardaria do avô? Detestaria Citizen Kane? Que laços a uniam a Portugal, além de frequentar uma clínica de cirurgia estética? A minha estranheza foi ainda maior por ter visto apenas o tema aflorado na imprensa espanhola, sem qualquer eco em Portugal.

A segunda notícia era impressionante. Falava de um senhor com 96 anos que na manhã do dia 20 votou nas legislativas espanholas. Mal depositou o boletim de voto na urna, situada num centro cultural de Madrid, desfaleceu. Todos os esforços para o reanimar foram inúteis.

A peça jornalística nada mais informava senão isto. Restou quase tudo por dizer. Senti vontade de saber quem era aquele homem que morreu segundos depois de exercer o direito de voto -- que durante 40 anos esteve proibido em Espanha. Quais seriam as suas convições políticas? O que haveria a destacar no seu percurso? Terá deixado família? O que diziam dele alguns amigos, uns quantos vizinhos? Com quem falou pela última vez? Que pensamentos povoados de angústia o terão sobressaltado na noite anterior?

Tanto vamos sabendo, no contínuo bombardeamento informativo de que somos alvo de manhã à noite. Mas tanto permanece por desvendar nas entrelinhas das notícias. E muitas vezes é precisamente quando as notícias terminam que a vida verdadeira começa, com o seu permanente jogo de sombras e luzes. Razão tinham Elizeth Cardoso e Chico Buarque quando cantavam: "A dor da gente não sai no jornal."

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