Estou a ler "A Confraria do Vinho" (6)
‘La lumière ne se fait que sur les tombes’, dizia Leo Ferré. Esta verdade irritava-me e citei a frase muitas vezes para me insurgir contra a ideia de predestinação dos grandes artistas à injustiça do anonimato e à implacabilidade da dura sobrevivência. Não tinha de ser assim, uma sociedade culta devia saber reconhecê-los em vida e obrigar-se a dar a cada dom sublime o seu merecido mecenas. Avec le temps, aprendi com Ferré que, de facto, para esses poucos a vida é quase sempre um gosto e seis vinténs. Mas nem por isso deixei de sentir uma emoção acrescida perante um talento que se tenha encarniçado contra as marés da sorte e sobrevivido à indiferença dos seus contemporâneos.
John Fante foi isso mesmo: um escritor americano filho de italianos pobres imigrados no Colorado, cujo pai assentava tijolos com brios de escultor e vivia entregue à bebedeira constante, às permanentes infidelidades à mulher e ao quase desprezo pelos filhos, numa espiral autoritária e primitiva que marcou o escritor para sempre.
A Confraria do Vinho é assumidamente autobiográfico e um dos últimos livros publicados por este ‘Hemingway italo-americano’, como lhe chamaram, girando em torno dos derradeiros dias do pai, quando o escritor, já casado e a viver em Malibu, regressa penosamente à casa da família perto de Sacramento e à vida entre os paisani, dominados pela idolatria às vinhas de Musso, afogados em chianti (o leite das suas segundas infâncias), eternos malandros deambulando pelas tascas à espera de se atirarem a qualquer rabo de saias.
O livro tem momentos de humor inesquecíveis, perpassados de uma sensibilidade extrema, ainda que esta se revele - nas palavras do narrador, Henry Molise – através de uma escrita que, sendo vigorosa e directa, varia entre os timbres opostos da crueza distante e do afecto profundo, à medida que se embrenha pelas descrições da vida em San Elmo, a terra onde nasce e de onde parte o mais cedo que pode, absolutamente determinado a entregar-se à paixão da escrita (uma obsessão que o consome depois de conhecer autores como Dostoyevsky, Steinbeck, Jack London, Fitzgerald, Wolfe e Chandler).
Fante até isso revive: os tempos em que, entregue a si próprio, longe do gueto italiano, é mais um homeless que desce ao fundo dos horrores da privação. Procura trabalho desesperadamente, não tem dinheiro e chega a dormir debaixo das pontes como um clochard. E quando consegue a estabilidade mínima (um quarto, uma cama, uma máquina de escrever) começa a produzir contos e histórias soltas para vários jornais e revistas, como o Evening Post, a Harper’s e a Esquire, mas é a debilidade económica que o leva a tomar em definitivo o ofício de argumentista de Hollywood, actividade pelo que ficará sobretudo conhecido. Com uma produção muito irregular, e apesar de publicar obras de grande envergadura, John Fante jamais conseguirá o estatuto de verdadeiro escritor. Será só em 1980, três anos antes da sua morte, que o poeta Buchovsky consegue, num ultimatum à sua editora, que a principal obra do escritor (Ask the Dust) seja reeditada, provocando um revivalismo da produção de Fante que o devolve à sua justa dimensão, mais de 40 anos depois da sua primeira publicação.
FANTE, John
'A Confraria do Vinho'
tradução de Luís Ruivo
colecção "outras estórias"
capa: Fernando Mateus
isbn 978-972-695-723-2
Passo agora a palavra à Leonor: - O que estás a ler quando não escreves?