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Delito de Opinião

Estou a ler "A Confraria do Vinho" (6)

Laura Ramos, 22.11.11

‘La lumière ne se fait que sur les tombes’, dizia Leo Ferré. Esta verdade irritava-me e citei a frase muitas vezes para me insurgir contra a ideia de predestinação dos grandes artistas à injustiça do anonimato e à implacabilidade da dura sobrevivência. Não tinha de ser assim, uma sociedade culta devia saber reconhecê-los em vida e obrigar-se a dar a cada dom sublime o seu merecido mecenas. Avec le temps, aprendi com Ferré que, de facto, para esses poucos a vida é quase sempre um gosto e seis vinténs. Mas nem por isso deixei de sentir uma emoção acrescida perante um talento que se tenha encarniçado contra as marés da sorte e sobrevivido à indiferença dos seus contemporâneos.

John Fante foi isso mesmo: um escritor americano filho de italianos pobres imigrados no Colorado, cujo pai assentava tijolos com brios de escultor e vivia entregue à bebedeira constante, às permanentes infidelidades à mulher e ao quase desprezo pelos filhos, numa espiral autoritária e primitiva que marcou o escritor para sempre.

A Confraria do Vinho é assumidamente autobiográfico e um dos últimos livros publicados por este ‘Hemingway italo-americano’, como lhe chamaram, girando em torno dos derradeiros dias do pai, quando o escritor, já casado e a viver em Malibu, regressa penosamente à casa da família perto de Sacramento e à vida entre os paisani, dominados pela idolatria às vinhas de Musso, afogados em chianti (o leite das suas segundas infâncias), eternos malandros deambulando pelas tascas à espera de se atirarem a qualquer rabo de saias.

O livro tem momentos de humor inesquecíveis, perpassados de uma sensibilidade extrema, ainda que esta se revele - nas palavras do narrador, Henry Molise – através de uma escrita que, sendo vigorosa e directa, varia entre os timbres opostos da crueza distante e do afecto profundo, à medida que se embrenha pelas descrições da vida em San Elmo, a terra onde nasce e de onde parte o mais cedo que pode, absolutamente determinado a entregar-se à paixão da escrita (uma obsessão que o consome depois de conhecer autores como Dostoyevsky, Steinbeck, Jack London, Fitzgerald, Wolfe e Chandler).

Fante até isso revive: os tempos em que, entregue a si próprio, longe do gueto italiano, é mais um homeless que desce ao fundo dos horrores da privação. Procura trabalho desesperadamente, não tem dinheiro e chega a dormir debaixo das pontes como um clochard. E quando consegue a estabilidade mínima (um quarto, uma cama, uma máquina de escrever) começa a produzir contos e histórias soltas para vários jornais e revistas, como o Evening Post, a Harper’s e a Esquire, mas é a debilidade económica que o leva a tomar em definitivo o ofício de argumentista de Hollywood, actividade pelo que ficará sobretudo conhecido. Com uma produção muito irregular, e apesar de publicar obras de grande envergadura, John Fante jamais conseguirá o estatuto de verdadeiro escritor. Será só em 1980, três anos antes da sua morte, que o poeta Buchovsky consegue, num ultimatum à sua editora, que a principal obra do escritor (Ask the Dust) seja reeditada, provocando um revivalismo da produção de Fante que o devolve à sua justa dimensão, mais de 40 anos depois da sua primeira publicação.

 

FANTE, John
'A Confraria do Vinho'                          

(The brotherhood of the grape)  
tradução de Luís Ruivo
editorial Teorema, 2007

colecção "outras estórias"

capa: Fernando Mateus

isbn 978-972-695-723-2


Passo agora a palavra à Leonor: - O que estás a ler quando não escreves?

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