A Ivone passou-me a bola mas, na altura, eu nem me dei conta, o que suponho constituir prova suficiente de que o mecanismo de defesa que me permite não ver indicações cujo objectivo seja fazer-me trabalhar mais está a funcionar correctamente. (Nota: trata-se mesmo de não ver e não de fingir não ver, que isso seria batota.) Ainda assim, não escapei ao repto e, porque no 'Delito' o alfabeto começa onde um homem (ou, neste caso, uma mulher) quiser (para grande alívio do Adolfo, que já admitiu ter ficado farto de ser o primeiro a ser chamado na escola), cabe-me continuar a série de textos sobre os livros que cada um de nós anda a ler.
Ora bem, estou a ler pelo menos três mas dois de forma irregular: Os Crimes dos Viúvos Negros, de Isaac Asimov, livro que há uma semana e tal me fez passar uma vergonha na Fnac, e Mortes Imaginárias, de Michel Schneider. Sendo formados por textos curtos e independentes (contos no primeiro caso, ensaios no segundo), vou-lhes pegando quando acabo outras obras. Quanto ao terceiro livro, aquele que estou verdadeiramente a ler no momento, é Uma Mentira Mil Vezes Repetida, de Manuel Jorge Marmelo. Peguei-lhe na sexta-feira, cumprindo uma promessa feita dias antes a mim mesmo de que, acabado o livro que então estava a ler, a minha próxima leitura sairia de um montinho na minha mesa da sala com quatro obras recentes de autores portugueses contemporâneos: Uma Mentira Mil Vezes Repetida; O Retorno, de Dulce Maria Cardoso; Quando o Diabo Reza, de Mário de Carvalho; e Por Este Mundo Acima, da minha colega delituosa Patrícia Reis (já agora, façam-me o favor de manter em segredo o facto de eu ainda não ter lido o livro dela, ok?). Por que escolhi a do Marmelo? Hmmm, querem mesmo saber? Os que responderam «não» façam o favor de se mudar imediatamente para o Arrastão ou para o Blasfémias. Os restantes merecem a verdade: tenho um fetiche por chapéus de coco desde os tempos em que Mr. Steed era tão cool usando um que conseguia ter Mrs. Peel como parceira (estranhamente, a minha relação com os guarda-chuvas é cem por cento impessoal ou até um pouco antagónica).
Mas basta de falar de mim. Do que trata Uma Mentira Mil Vezes Repetida, se é que a ficção trata alguma vez de alguma coisa? Tão simples que se conta numa frase: trata das histórias escritas por Marcos Sacatepequez, um autor do Belize que levou à falência todas as editoras que o publicaram e cujo corpo sem vida andou a passear pelo mundo em resultado de um conflito legal entre a viúva e o governo da Guatemala antes de desaparecer em parte incerta, e também de acontecimentos da vida de Albrecht, um marinheiro flamengo que se julga amaldiçoado depois de partilhar um navio com o cadáver de Sacatepequez, e ainda do facto de um e outro serem personagens de Cidade Conquistada, a monumental obra de Oscar Schidinski, um desconhecido escritor húngaro que em fuga ao nazismo terá passado por Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial antes de também ele desaparecer num navio efectuando a travessia do Atlântico (a menos que, como alvitra Afonso Cão, um mendigo de Gondomar que o conheceu em Lisboa, tenha ido para a Argentina e ficado famoso com o nome de Jorge Luis Borges), e ainda da circunstância de Cidade Conquistada e o seu autor serem afinal obra de um portuense que aproveita o tempo de que dispõe na sequência da generosa reforma por invalidez que, aos trinta e seis anos de idade, lhe foi atribuída em resultado de uma grave doença de pele causada pelo «implacável stresse do funcionalismo público» para se sentar nos transportes públicos agarrando um volumoso calhamaço de mil e duzentas páginas com o título Cidade Conquistada, que ele próprio encheu de textos avulsos retirados da internet (entre os quais um de Borges) e mandou depois encadernar, o qual lhe serve de pretexto para meter conversa com os outros passageiros, a quem conta episódios da vida de Schidinski e histórias de Sacatepequez (como a excelente O homem-zebra, pretensamente incluída em Cidade Conquistada e que abre Uma Mentira Mil Vezes Repetida), salientando quão injusto é um escritor de tal calibre permanecer desconhecido da maioria do público, tudo na esperança de, incapaz de escrever um livro de sucesso ele mesmo (apesar de algumas brilhantes ideias tidas no passado mas antecipadas por escritores como José Saramago e Almudena Grandes), acabar por se tornar num intelectual famoso, convidado para colóquios e programas televisivos como especialista maior num autor monumental e enigmático. (Ponto1: Eu não garanti que se explicava numa frase? Ponto 2: Não é curioso como essa frase, oficialmente a mais longa que alguma vez escrevi, parece acabar cedo demais? Uma pessoa começa a ler, activa o regulador de velocidade e depois está distraída quando é preciso travar...) Ah, só mais um pormenor: tudo isto (o portuense nos transportes públicos, o livro do autor húngaro e as personagens desse mesmo livro) é afinal obra de um portuense, Manuel Jorge Marmelo, que anda há meses a colocar no seu blogue crónicas de viagens de autocarro pela cidade do Porto.
Confusos? You won't be, after this week's episode of... Soap. (Credo, duas referências a séries televisivas de culto no mesmo post. Ainda bem que miúdos com menos de trinta anos não lêem textos deste tamanho ou entrariam em parafuso.) A verdade é que, lendo o livro, torna-se fácil distinguir os vários planos e isto constitui um elogio tanto à forma como ele se encontra estruturado como escrito. Uma Mentira Mil Vezes Repetida encaixa-se naquela corrente literária em que, por inserção de vários níveis de ficção, e pelo modo como esta se intercala com e sobrepõe à realidade (também ela parcial ou totalmente ficcionada), se questiona o papel da literatura na vida comum, e cujos expoentes máximos são gente como Jorge Luis Borges (obviamente, mencionado no livro de forma nada acidental), Italo Calvino, Enrique Vila-Matas e Roberto Bolaño. Terceiro livro de Manuel Jorge Marmelo que leio (após Os Fantasmas de Pessoa e As Sereias do Mindelo), Uma Mentira Mil Vezes Repetida ameaça ser o melhor. Porém, encontrando-me apenas a meio, não posso emitir um juízo concludente nem contar-vos como acaba. Posso apenas desejar que o narrador não se veja afectado pelo anunciado corte de linhas nos transportes públicos.
E agora cabe-me passar a vez. O que é que andas ler, José Gomes André?
Marmelo, Manuel Jorge Uma Mentira Mil Vezes Repetida
Quetzal Editores (2011)
Col. Língua Comum
ISBN 9789725649725
(Nota: Apesar de ser uma edição da Quetzal, Uma Mentira Mil Vezes Repetida encontra-se em português.)